Psicologia e Psiquiatria: Cordialidade ou oposição? | Colunista

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E aí, adversárias? Definitivamente não! Atualmente, os dois campos científicos são considerados complementares, inclusive, temos hoje evidência científica que o elo de ambas não só é plausível, como também recomendado em diversos quadros psicopatológicos. A essa prática conjunta é dado o nome de tratamento combinado.

Porém, há de se mencionar que nem sempre foi assim, de fato houve um antagonismo entre essas duas ciências que merece nossa atenção e a partir dessa explicação poderemos compreender os motivadores da discórdia, como também apreciar os desdobramentos que nos trouxeram a essa reciprocidade técnica que a Psicologia e a Psiquiatria tem hoje.

Para discorrer sobre a trama é necessário resgatar um prisma filosófico importante da época que se configurou como o principal pilar de sustentação das discordâncias, essa perspectiva é a do “dualismo cartesiano” fundada pelo filósofo francês René Descartes.

Essa perspectiva traz um caráter de cisão entre o subjetivo e objetivo. O objetivo seria aquilo que possui existência concreta, uma natureza material que poderia ser apreendida pelos órgãos sensoriais. E na outra esfera existiria o subjetivo, uma instância com subsistência necessariamente abstrata, sem nenhuma propriedade espacial, um algo imaterial e intangível, embora passível de compreensão.

Assim, para Descartes, o ser humano teria essa configuração intrínseca, essa distinção entre corpo e alma ou, mais especificamente, entre encéfalo e mente.

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Entre as atribuições do encéfalo estariam as intermediações com tudo aquilo que podemos encontrar em animais não humanos, como, ação percepto-motora, afetivo-emocional, expressão social, etc. Já a mente seria a responsável pelas atividades superiores, como o intelecto, a consciência, isto é, a tudo aquilo que nos diferencia de outros animais.

A representação do subjetivo, segundo a tese, não seria projetada pelo encéfalo, centro do sistema nervoso, mas sim pela alma. O conceito de alma é importantíssimo para a compreensão da operacionalização desses dois polos, pois, apesar de irredutíveis e independentes, resguardariam um relacionamento mediado pela entidade supracitada.

Isto é, a alma guarda uma relação de importância significativa no âmbito do relacionamento e comunicação entre a dupla, pois seria ela a responsável por intermediar o contato com o encéfalo, contato esse executado por meio de uma glândula localizada entre os dois hemisférios cerebrais, denominada epífise ou pineal.

Essa teoria foi largamente considerada no século XVII e, por determinado período, se caracterizou como paradigma dominante em algumas áreas do saber. A Psicologia e a Psiquiatria foram dois campos que se inspiraram nessa perspectiva.

O dualismo como exercício prático

Na psiquiatria, herdeira da tradição médica-biológica, tinha-se a perspectiva voltada para a objetividade do organismo. Havia aqui a preeminência do encéfalo na compreensão do funcionamento humano, no objeto de estudo e na intervenção clínica; a primazia do substrato material conduzia toda a teoria e prática dos psiquiatras. O tratamento era basicamente medicamentoso, se assemelhando à administração e gestão de outros casos clínicos de patologias não psicológicas.

A Psicologia trilhava seu caminho com uma concepção subjetiva dos fenômenos psíquicos, nesse prisma havia a prevalência da mente como o escopo do estudo, guia argumentativo e postura clínica. A proeminência da prática clínica eram principalmente as psicoterapias, essas tinham a consciência do paciente como objeto de estudo e campo para ação e mudança.

O auge da desavença

Na metade do século XX, tivemos o que ficou conhecido como a revolução psicofarmacológica, esse episódio da história se caracterizou como uma ascensão das
medicações psicotrópicas, seu uso clínico demonstrou eficácia e efetividade em diversos casos de desordens mentais. Esse fato culminou em um maior acirramento no debate mente x encéfalo e, em seguida, subsidiou uma polarização entre as áreas, resultando no ápice da perspectiva dualista.

Como consequência aos eventos supramencionados, a Psicologia passou a adotar uma postura mais mentalista, salientando com maior vigor aspectos emocionais, cognitivos e sociais dos pacientes. Principiou-se na premissa de que somente a psicoterapia seria suficiente para o tratamento e alívio da sintomatologia dos pacientes. Contudo, a Psiquiatria realçava com robustez as substâncias químicas e se restringiu a prescrição farmacológica, desprezando assim os aspectos subjetivos concernentes a uma psicopatologia.

À vista disso, nota-se a formação de uma tríade preponderante e norteadora para o exercício teórico e prático:
 

Psicologia

  • Foco – Esfera subjetiva do fenômeno psíquico.
  • Objeto de estudo – Relações entre aspectos emocionais, sociais e cognitivos.
  • Intervenção – Psicoterapia.
     

Psiquiatria

  • Foco – Esfera objetiva do fenômeno psíquico.
  • Objeto de estudo – Tecido neural.
  • Intervenção – Psicofarmacológica.

Esse cenário antagonista perdurou por cerca de meio século, a mudança irrompeu no fim do século XX com a grande contribuição das técnicas de neuroimagem funcional que trouxeram evidências clínicas e experimentais para a discussão. Comprovando-se que de fato haviam contribuições da psicoterapia na alteração do tecido neural, bem como a promoção de mudanças na comunicação neural, tal como os tratamentos com psicotrópicos.

A neuroimagem funcional, segundo Callegaro e Fernandez (2007) “indicaram de forma clara que intervenções psicoterapêuticas atuam no tecido neural, produzindo alterações no padrão de comunicação sináptica semelhantes às produzidas por tratamentos farmacológicos”.

A prelúdio da reciprocidade

Em virtude dos fatos mencionados, pôde-se notar que, após as evidências revelarem a contribuição de cada intervenção, a rivalidade no debate filosófico, como também na prática clínica, se tornaram descartáveis, visto que tanto a Psicologia quanto a Psiquiatria tinham sua efetividade e eficácia no tratamento.

O paradigma norteador atual, tanto na Psiquiatria quando na Psicologia, é do ser humano como produto do biopsicossocial. Um organismo integrado na esfera psíquica e social, um ser unificado. Dessa forma, temos aqui o deslocamento da perspectiva dualista, dando lugar a uma concepção monista indissociável.

Atualmente, embora tenha-se exceções, há um relacionamento mais maduro quanto as competências de cada área, cada qual sabe de suas limitações e atribuições no exercício da função e o eixo de trabalho de ambas se conduzem pelas necessidades do paciente. E, dessa forma, houve o fortalecimento no atendimento de saúde mental, bem como a possibilidade de um tratamento combinado.

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Referências:

Callegaro, M. M., & Landeira-Fernandez, J. (2007). Pesquisas em neurociência e suas implicações na prática psicoterápica. In A. V. Cordioli (Ed.), Psicoterapias: Abordagens atuais (pp. 851-872) (3a ed.). Porto Alegre: ArtMed.

RANGÉ, Bernard et al. Psicoterapias cognitivo-comportamentais: um diálogo com a psiquiatria. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.

KANDEL, Eric R. et al. Princípios de neurociências. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

RAMOZZI-CHIAROTTINO, Zelia; FREIRE, José-jozefran. O dualismo de Descartes como princípio de sua Filosofia Natural. Estudos Avançados, [s.l.], v. 27, n. 79, p. 157-170, 2013. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0103-40142013000300012.