Nutrição hospitalar: experiência de uma profissional em tempos de pandemia | Colunista

Quando me formei em 2007 não imaginava o quanto eu poderia influenciar a vida das pessoas através da alimentação. Com o tempo fui aprendendo que o ato de se alimentar não se encerra com levar o alimento à boca, mastigar e engolir, mas todo o sentimento afetivo que aquele alimento revive naquele corpo. Não apenas nutri-lo, mas também alimentando de esperança.

Com o passar dos anos, fui professora, pesquisadora, fiz mestrado e entrei para as forças armadas. Lá, 2014, me debrucei em Nutrição Clínica, assistência ao paciente hospitalizado, como profissional recém formada, pouca experiência na área, estudei e enfrentei as dietas, as enterais e parenterais como um grande desafio.

Era estranho aquele encontro muitas vezes desprovido de conversas, pois o paciente estava entubado e inconsciente ou em um nível de demência que não me compreendia. Saí das forças armadas em 2019 com um legado grande de práticas e experiências.

Contudo, naquela época não tinha noção o quanto essa experiência iria ser importante para o pandemônio que estaria por vim no ano de 2020, a pandemia da COVID-19.

A minha entrada no Hospital e a COVID-19 – 2020

Em maio de 2020 fui convidada por uma amiga, também nutricionista, para entrar na equipe do Serviço de Nutrição de um hospital em Salvador. A princípio achei interessante o desafio de estar na linha de frente do enfrentamento da COVID-19, mas como todos, ou pelo menos a maioria, existia um certo tipo de medo pelo incerto e contagioso coronavírus.

No primeiro mês que assumi o serviço, testei positivo para COVID-19 e fui afastada por 15 dias para tratamento. Senti quase todos os sintomas e foi uma experiência terrível. Não fui hospitalizada, mas estava sozinha na casa de uma amiga (sem minha amiga) reservando as minhas energias para tomar banho, ir ao banheiro ou me alimentar, pois qualquer esforço trazia um desconforto respiratório.

Passado o período, retornei as atividades com força total. Atuava no serviço noturno e o contato com os pacientes não eram tantos quanto no turno diurno. Restringiam as admissões de “pacientes não COVID” e as informações da equipe de enfermagem dos “pacientes COVID”. Nesse período o CFN recomendava o teleatendimento em pacientes testados positivo para COVID. (CFN, 2020)

Tudo era muito novo de novo para mim. Aprender sobre uma nova rotina, ser aceita por um grupo já formado, me adaptar aos procedimentos foram desafios enfrentados. Além da chegada em casa, tudo separado, canetas, cabo de celular, bolsa, roupas, sapatos, sem brincos, colares, anéis… tudo descartável e estritamente separado para o hospital.

Contudo, aconteceu algo inesperado para a equipe de Nutrição: a diretoria do hospital tomou uma decisão que mudaria muito os rumos das nossas atividades: retirar a concessionária de alimentos e tornar o serviço de fornecimento de alimentos próprio, autogestão.

Nesse momento eu era a única Nutricionista a querer ir para a UAN, não porque era a minha primeira opção, mas vi ali uma oportunidade de adquirir mais uma experiência desafiadora. E que experiência!

A ida para produção

Nesse momento fui deslocada para a produção. Já tinha tido uma experiência importante na Marinha do Brasil na UAN e me senti desafiada a implantar um novo serviço. A partir daí foi criada uma nova rotina, fui para o plantão diurno e minhas atividades estavam em iniciar um novo serviço do zero. Novos funcionários, novas escalas, planilhas, POP, treinamentos, solicitação de pedido aos fornecedores, contato com funcionários e o enfrentamento que uma UAN hospitalar traz para a Nutricionista de produção.

As demandas eram tão grandes que comecei a ter crise de ansiedade. Eu sentia os mesmos sintomas da COVID, fazia exames, monitorava minha oxigenação, e estava tudo normal. Comecei então a entender que aqueles sintomas eram passageiros e que eles não podiam tomar conta do meu corpo e prejudicar meu serviço. Eu fazia parte de um setor muito importante e exercer minhas atividades de forma plena e consciente era o mínimo que poderia fazer ali.

Tive muito apoio dos funcionários nesse momento e não posso deixar de citar o cozinheiro Diego* e a Técnica de Nutrição Thais* da minha equipe que sempre me motivaram e tornaram o serviço muito mais leve e mais “saudável”. Nós tínhamos uma coesão da execução das atividades o que facilitava o enfrentamento dos problemas que por ventura apareciam e isso fez toda a diferença.

Mesmo diante da quantidade de atividades, consegui observar um mundo muito mais amplo que perpassa a preparação das refeições, montagem das baixelas, mapa da copa, etiquetas e distribuição desses alimentos aos pacientes de forma correta e na temperatura adequada.

O que tiro de mais importante desse momento é que o serviço de copeiragem talvez seja o serviço mais importante na concretização do tratamento dietoterápico, dos pacientes que se alimentam via oral.

A comida pode estar maravilhosa, o mapa da nutricionista clínica atualizado com todos os detalhes necessários, as etiquetas impressas, as temperaturas adequadas, os carrinhos arrumados e limpos, mas são os copeiros que finalizam o trabalho. E se por qualquer motivo eles não entregarem a alimentação correta, todo o trabalho anterior foi em vão. Mas isso não significa que devemos crucificá-lo quando houver um erro.

O papel da Nutricionista nesse momento, é acolher o seu funcionário e tentar entender o que ocorreu. Muitas vezes, são problemas pessoais, desgaste (tivemos muitos afastamentos por COVID entre os funcionários da UAN e isso sobrecarrega quem fica no serviço), não entendimento da escrita do mapa, falta de treinamento… eles são seres humanos e puni-lo, para mim, não seria a melhor solução.

Eu entendi, naquele momento, que precisava dos copeiros, mais do que nunca, ao meu lado. Cheguei a criar algumas estratégias para termos o melhor relacionamento possível, como a da gamificação na execução das atividades, mas não tive tempo de implementar porque outro capítulo na minha atividade hospitalar estava a me esperar.

Esse momento na produção me fez ter a certeza que uma maior aproximação da Nutricionista Clínica com o serviço de copeiragem é a melhor estratégia para evitar erros. Às vezes é necessário descer do salto e se permitir uma maior aproximação com a equipe da UAN.

Historicamente e culturalmente há uma certa rivalidade entre a Nutrição Clínica e a Produção. Eu digo que isso só enfraquece a profissão e prejudica o paciente. Desde já convido às minhas colegas de profissão a refletirem mais sobre isso, pois pode fazer a diferença no serviço de nutrição de excelência.

O retorno para Clínica e a emergência ala amarela COVID

Devido à grande entrada de pacientes com suspeita de COVID, abertura de novas enfermarias e UTIs, pois as existentes estavam tão lotadas que os pacientes estavam sendo internados na própria emergência de forma adequada, mas improvisada. Por conta disso, os pacientes não estavam sendo assistidos de forma plena no que tange a assistência nutricional, pois ainda, naquele momento, a equipe de Nutrição não tinha em sua rotina visitar os pacientes da emergência. Não é uma prática comum entre as demandas da Nutrição.

O hospital então resolveu contratar novos profissionais. Contudo, como eu já tinha passado pela Clínica e já entendia do sistema e procedimentos do hospital, fui deslocada, de forma voluntária, mais uma vez, da produção para a Clínica com o intuito de acolher esses pacientes da melhor forma possível.

A emergência COVID fervilhava de tantos pacientes. Aguardavam conduta, leito, exames…via ali a necessidade de criar uma nova rotina para suprir a assistência nutricional.

Ao iniciar minhas atividades na emergência, eu, primeiramente, me paramentava, pegava todos os prontuários novos, atualizava o meu mapa. Logo após eu me dirigia a todos eles e os admitiam.

Esses contatos com os pacientes me fizeram observar a importância desse momento principalmente no que tange os sintomas da COVID-19, como ageusia, anosmia, enjoos, perda de apetite, diarreia, principalmente, e a interferência no consumo dos alimentos. Involuir a consistência para evitar o desconforto respiratório, aumentar a densidade calórica, inserir suplementos, adicionar alimentos como limão, azeite de oliva e até mesmo um pouco mais de sal, já tornava aquele prato prazeroso e mais aceitável para o paciente. (Bezerra, 2018).

A equipe de Nutrição fazia de tudo para que o paciente aceitasse o máximo das refeições oferecidas possível e essa dedicação fazia e faz toda diferença na recuperação e prognóstico desses pacientes.

Sabemos que a alimentação envolve muito mais do que alimentar o corpo. Os alimentos são significados e o ato de se alimentar conforta não apenas o estômago, mas muitas vezes uma memória afetiva que alimenta a alma (Deram, 2018).

Um dia, na emergência COVID, atendi Sr José*, com saturação de 96%, obeso, idoso, falta de apetite e diminuição da ingestão calórica na última semana. Fiz a admissão dele e pedi que respondesse com sinal com a mão e que falasse o mínimo possível. Não estava tão grave, mas vi em seus olhos medo e tristeza.

Após liberar a dieta dele, perguntei se teria mais alguma coisa que eu poderia fazer e ele sinalizou com a cabeça que não. Perguntei então se ele gostava de música (queria cantar uma música para ele, aprendi com os Terapeutas do Riso durante a minha missão na Marinha), ele me disse que gostava, mas que naquele dia ele não estava com “espírito”. Então, fiquei olhando para ele e cantando em silêncio uma música de Gonzagão (Que nem jiló).

Mandei as minhas melhores energias de positividade e desejei que ele não se conformasse com aquela situação e não se entregasse. Nossa conversa foi em silêncio. Voltei para atender outros pacientes, mas fiquei acompanhando o caminhar de Sr. José no hospital. Não estava mais sendo acompanhado por mim, mas minhas colegas sempre me passavam informações sobre sua aceitação alimentar e que estava evoluindo com um bom prognóstico. Sete dias após a admissão, o Sr. José teve alta hospitalar.

Contudo, infelizmente nem sempre foi assim. Vi muitos pacientes que admiti na emergência irem a óbito em muito pouco tempo. Todas essas perdas mexiam diretamente com toda a equipe: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas extremamente abatidos e cansados e talvez até desesperançosos com tantas vidas ceifadas e impotentes, sem ter o que fazer a mais para salvar aquelas vidas. 

O que mais me deixava motivada era a alta hospitalar de um paciente sobrevivente da COVID. Cada alta, uma vitória e uma comemoração.

O maior aprendizado

Para mim ser nutricionista teve um novo significado. Me mostrou de forma mais prática um novo olhar da alimentação na assistência nutricional hospitalar e nesse caso no tratamento da COVID-19. Aprendi a não apenas entender a importância da unicidade do serviço de nutrição, mas também a necessidade de praticar esse serviço: caminhar em todos os processos, conversar com os funcionários, vivenciar na prática e não ficar apenas na teoria, na romantização do “estou fazendo a minha parte”.

Foram muitas histórias tristes, muitas alegrias e muito aprendizado. Infelizmente fui desligada do hospital, mas a certeza que contribui da melhor forma para o serviço e principalmente para os pacientes, isso está enraizado em mim.

Uma porta se fecha, mas muitas abrem logo depois. Sigo com a minha empresa, compartilhando experiências e fazendo o que eu mais amo na vida: estimular outros estudantes e nutricionistas a desenvolverem todo o seu potencial, pois a alimentação transforma vidas.

*Pseudônimos

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Referências:

Bezerra, V. M. Técnica Dietética Em preparações especiais. Teoria e Prática de Laboratório. Editora Rubio: 1ª edição. 2018.

CFN, 2020. Acessado em https://www.cfn.org.br/wp-content/uploads/2020/03/nota_coronavirus_3-1.pdf

Deram, S. O peso das dietas. 2ª edição. Editora Sextante. 2018.

Por Sanar

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