Os sistemas alimentares no contexto da pandemia de COVID-19 | Colunista

Os sistemas alimentares englobam todos os elementos e atividades relacionadas à produção, transformação, distribuição, preparação e consumo de alimentos, tendo impacto direto sobre a alimentação da população. Quando estes sistemas sofrem algum desequilíbrio em uma ou mais atividades, o estado nutricional e a saúde dos indivíduos são afetados. 

A pandemia da COVID-19 teve, dentre outras terríveis consequências, um papel direto sobre os sistemas alimentares, atuando diretamente sobre suas fragilidades e consequentemente interferindo na alimentação da população mundial. O meu objetivo aqui é discorrer sobre estes impactos, focando principalmente na situação do Brasil e as consequências para a população brasileira.

OS IMPACTOS SOBRE A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS

A produção de alimentos no Brasil foi considerada uma atividade essencial desde o início da pandemia e, portanto, suas atividades não foram interrompidas. A partir disso, este setor não sofreu efeitos nocivos. Na verdade, a indústria de alimentos teve uma crescente em 2020, com um aumento no volume de produção e no faturamento de 1,8% e 12,8%, respectivamente.

No entanto, a indústria de alimentos atual é projetada a fim de garantir um alto ritmo de produção, a fim de maximizar os lucros. Este sistema opera, muitas vezes, com grandes quantidades de trabalhadores alocados em pequenos espaços, causando grandes aglomerações. Como consequência, a propagação de agentes infecciosos nestes lugares é muito facilitada. Portanto, apesar do setor de alimentos ter mantido seu ritmo de produção, as indústrias contribuíram para o agravamento da crise sanitária em muitas cidades.

 Este é o caso dos frigoríficos, os quais participaram da ampla difusão da doença em diversas cidades. Na região sul do Brasil, por exemplo, os municípios com maior presença de frigoríficos de abate apresentaram um maior número de casos confirmados e mortes pela COVID-19. Devido ao grande número de casos, muitos frigoríficos tiveram que paralisar suas atividades para evitar uma maior proliferação do vírus e aumento nos riscos à saúde dos trabalhadores.

OS IMPACTOS SOBRE A AGRICULTURA FAMILIAR

A pandemia também impactou diretamente os agricultores familiares, desde a produção até a distribuição de alimentos. Muitos protocolos de proteção, falta de equipamentos e dificuldade de transporte de trabalhadores afetaram negativamente sua capacidade produtiva. Além disso, as principais vias de escoamento da produção (feiras livres e escolas) tiveram suas atividades encerradas, o que reduziu a comercialização dos alimentos produzidos.

A fim de evitar um grande desperdício de sua produção, muitos agricultores optaram por reduzir seus preços. Porém, a redução nos preços somada à queda nas vendas, resultou em alterações drásticas na renda. No Brasil, alguns indícios apontam que metade dos agricultores familiares do país tiveram uma perda média de 35% da renda bruta mensal. Os estados do Amapá, São Paulo, Distrito Federal, Rio Grande do Sul e Roraima foram os mais afetados. 

É importante notar que as consequências da pandemia sobre os agricultores familiares se retroalimentam. A queda na renda dificulta a compra de insumos, o pagamento da mão de obra e aquisição e manutenção de equipamentos, impedindo que estes agricultores mantenham sua capacidade produtiva. A menor produção resulta em menores lucros, que consequentemente dificulta a aquisição de recursos necessários para a próxima produção. E assim sucessivamente. 

Os agricultores familiares também viram muitos de seus alimentos apodrecerem. Como visto, estes tiveram uma enorme redução no escoamento de suas produções devido à queda da demanda. E, uma vez que suas capacidades de armazenamento são pequenas, muito do que foi produzido foi perdido. O fechamento de fronteiras, a diminuição dos voos comerciais e a redução na mobilidade de pessoas também são fatores que podem ter aumentado a perda de alimentos na pandemia.

OS IMPACTOS SOBRE O CONSUMO ALIMENTAR

Os impactos da pandemia sobre o consumo alimentar são tão graves que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera que atualmente enfrentamos uma situação de Emergência Alimentar, a qual é definida como “uma situação extraordinária na qual as pessoas são incapazes de atingir suas necessidades básicas para sobrevivência, ou existem graves e imediatas ameaças à vida e bem-estar humano”. 

A redução no poder de compra é um dos principais fatores que desencadeiam estes problemas. Medidas de segurança necessárias para contenção do vírus, como lockdowns e restrições de mobilidade, afetaram redes de comércio e muitos indivíduos vieram a perder seus empregos. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, divulgada em abril de 2021, estimou que 14,4 milhões de brasileiros estão desempregados. 

A alta taxa de desempregados reflete diretamente sobre a renda da população brasileira. O número de pobres no Brasil triplicou nos últimos meses, saindo de 9,5 milhões em agosto de 2020 para mais de 27 milhões em fevereiro de 2021. Estima-se que a cada ponto percentual reduzido na economia global, o número de pessoas vivendo na pobreza aumente em 2% a 3%, ou cerca de 14 a 23 milhões de pessoas ao redor do mundo. Mas os impactos nos países em desenvolvimento podem ser ainda maiores. 

O Brasil foi um dos países no qual os preços dos alimentos subiram mais rapidamente. A inflação sobre o grupo de alimentos teve um crescimento de 9,34% em 2020. Dentre os alimentos mais afetados estão aqueles que compõem a cesta básica, como arroz, feijão, batata, carnes, óleo de soja e laticínios. Assim, a redução no poder de compra associada a um aumento no preço dos alimentos, dificulta a aquisição de alimentos por grande parte da população.

Duas são as principais consequências desses fatores sobre o consumo alimentar da população:

1. O acesso a alimentação é dificultado:

Esta é uma realidade mais evidenciada em países pobres, nos quais grande parte da população já sofria com problemas de renda antes da pandemia, mas com o início da crise econômica tudo se agravou. Indícios preliminares apontavam que a pandemia poderia adicionar 83 a 132 milhões de pessoas à desnutrição. Dados recentes sugerem que entre os meses de fevereiro e junho de 2020, 45 milhões de pessoas entraram em uma situação de insegurança alimentar grave, sendo que 33 milhões são residentes do sul e sudeste asiático e da África subsariana. Entre os anos de 2019 e 2020, o número de indivíduos sob insegurança alimentar passou de 135 milhões para 265 milhões.

2. Alteração no padrão alimentar:

É uma tendência que a crise econômica tenha consequências sobre o padrão alimentar dos indivíduos. Em muitos países, consumo de frutas, legumes, carnes e peixes caíram durante a pandemia, enquanto a aquisição de alimentos ricos em açúcares e gorduras, que tendem a ser mais baratos, aumentaram. Novamente, os países mais pobres tendem a ter maiores índices de reduções no consumo de alimentos mais nutritivos devido a incapacidade da população de comprá-los. 

No Brasil, os resultados de uma pesquisa demonstraram um aumento na frequência de ingestão de frutas, hortaliças e feijão durante a pandemia. Este aumento foi de 40,2% para 44,6%. Porém, quando se avaliou os indivíduos residentes da região norte e nordeste e aqueles com menor escolaridade, encontrou-se um aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, ricos em açúcares e gorduras.

OS IMPACTOS SOBRE A ALIMENTAÇÃO DE CRIANÇAS

As políticas públicas que assegurem o acesso à alimentação de crianças são de extrema importância para garantir a segurança alimentar e a boa nutrição destes indivíduos. Muitos países garantem a oferta de alimentos para esta faixa etária através de programas realizados no âmbito escolar. No Brasil, o principal exemplo é o Programa de Alimentação Escolar (PNAE), que garante pelo menos 20% das necessidades nutricionais diárias dos alunos da rede pública.

No entanto, com o encerramento das aulas presenciais, a realização destes programas se tornou inviável. Até o final de maio de 2020, 368 milhões de crianças estavam perdendo as refeições escolares em todo o mundo devido ao fechamento das escolas. Ainda mais, muitos alunos da rede pública viram a renda de seus pais caírem drasticamente durante a pandemia, o que dificulta ainda mais o acesso a alimentação destas crianças. 

No Brasil, ficou definido que os gêneros alimentícios adquiridos com os recursos do PNAE seriam distribuídos para as famílias dos estudantes da rede pública. Os alimentos foram distribuídos na forma de kits, refeições prontas ou os como de auxílio financeiro para aquisição de alimentos. A forma de distribuição dos recursos ficou a cargo dos estados e municípios. 

No entanto, apesar de esta ter sido uma estratégia válida para minimizar a privação de alimentos pelos alunos, há diferenças quanto aos resultados obtidos. Isso porque muitas vezes as refeições ou gêneros alimentícios ofertados são distribuídos para outros integrantes da família, não sendo inteiramente destinados aos alunos. Além disso, os recursos repassados podem não ser suficientes para aquisição de alimentos nas quantidades necessárias para garantir o suporte nutricional dos indivíduos.

Eu espero que após ter lido este texto você reflita sobre este tópico. Pense no que pode ser feito para melhorar o funcionamento dos sistemas alimentares e reduzir as desigualdades alimentares. Tá, vou te dar uma ajudada nessa reflexão… deixo aqui uma recomendação de leitura sobre o futuro dos sistemas alimentares: https://www.glopan.org/wp-content/uploads/2020/09/Foresight-2.0_Future-Food-Systems_For-people-our-planet-and-prosperity.pdf.

A segunda recomendação é para você conhecer mais sobre sistemas alimentares e como as políticas públicas brasileiras vem tentando combater seus desequilíbrios ao longo dos anos: https://www.cfn.org.br/wp-content/uploads/2017/09/oms.pdf

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REFERÊNCIAS

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