O fenômeno da automutilação e sua relação com a adolescência | Colunista

Ser adolescente é viver não só um período marcado por significativas mudanças oriundas da puberdade, mas também por muitos paradoxos. “Não ser criança, mas ainda não ser adulto. Ter confiança em seus pais e ao mesmo tempo questioná-los. Querer ser independente, mas ter medo de arriscar-se. Apaixonar-se e ficar com vergonha de revelar esse sentimento” (ZANELLA; ZANINI, 2013, p. 59), dentre outros.

Reconhecer como essas mudanças e dilemas impactam na vida dos adolescentes é muito importante para nos ajudar na compreensão e no manejo de um fenômeno bastante recorrente na adolescência na atualidade: a automutilação.

O que é automutilação?

Também conhecida como autolesão ou lesão autoprovocada, a automutilação é um fenômeno complexo e multideterminado, oriundo da interação entre fatores biológicos, psicológicos, culturais e sociais, com maior prevalência entre os adolescentes (WALSH, QUESADA et al., 2020).

Trata-se de um problema de saúde pública reflexo de sofrimento psíquico e físico que tem preocupado famílias, educadores, especialistas da área da saúde e sociedade civil, sendo inclusive pauta de debates, seminários e audiências públicas.

No Brasil, em abril de 2019, foi instituída, a partir da Lei nº 13.819, a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. 

Essa Lei, que deve ser implementada pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal e com participação da sociedade civil e instituições privadas, institui uma série de ações que devem ser realizadas com o objetivo de prevenir os comportamentos autolesivos e o suicídio.  

Para tanto, a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio visa, dentre outros, os seguintes objetivos: 

  • promover a saúde mental; 

  • prevenir a violência autoprovocada; 

  • controlar os fatores determinantes e condicionantes da saúde mental;

  • garantir o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico; 

  • informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção; 

  • promover a educação permanente de gestores e de profissionais de saúde em todos os níveis de atenção quanto ao sofrimento psíquico e às lesões autoprovocadas;

  • promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio, envolvendo entidades de saúde, educação, comunicação, imprensa, polícia, entre outras.

Para além do expresso nesta Lei, é dever de cada cidadão fazer sua parte, buscando sempre que necessário, acolher e cuidar daqueles(as) que, por diferentes motivos, se autolesionam, evitando toda e qualquer forma de julgamento a priori que possa prejudicar ainda mais o quadro de sofrimento dessas pessoas. 

A automutilação pode ser considerada um transtorno mental?

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) classifica a automutilação não como um transtorno, mas como um sintoma decorrente de diversos transtornos conhecidos, tais como os Transtornos do Neurodesenvolvimento, os Transtornos Dissociativos de Identidade e o Transtorno de Personalidade Borderline (QUESADA et al., 2020).

Nessa mesma linha, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10) também não reconhece a automutilação como um tipo de transtorno, enquadrando-a em determinadas classificações, como no transtorno de personalidade com instabilidade emocional, subdividido em transtorno da personalidade agressiva, borderline e explosiva (OMS, 2008; REIS, 2018, apud QUESADA et al., 2020).

É importante ressaltar, que independente de sua classificação, a automutilação não deve ser menosprezada, pois, geralmente associado a esse tipo de comportamento, há um intenso quadro de sofrimento por parte de quem o pratica.

Relação entre automutilação e adolescência 

Embora seja comum conceituarmos a adolescência como o período de transição da infância para a vida adulta, precisamos ter cuidado para não reduzi-la somente a isso, pois corremos o risco de generalizarmos a experiência individual de cada adolescente, resultando no não devido reconhecimento de sua singularidade e seu próprio modo de adolescer.

Segundo Zanella e Zanini (3013, p. 59) a “adolescência é uma fase de reencontro com o eu, de atualização corporal, de descobertas e escolhas, de sexualidade aflorada, de ousadia”. É também um período em que o adolescente entra em contato com inseguranças, medos, incertezas, angústias e perdas difíceis de lidar.

Demandas como a busca pela construção da própria identidade, relação com a autoimagem, luto pela perda do corpo infantil, necessidade de ser aceito dentro de um determinado grupo, conflitos com os pais, dentre outros, são considerados cenários que geram crises que podem vir acompanhadas de muito sofrimento. 

Ao tentar lidar com esse contexto de mudanças e contradições, muitos adolescentes acabam sendo vítimas de si mesmos na prática da automutilação, onde braços, coxas, peitos se tornam alvos na tentativa de amenizar a dor que sentem e não encontra outras formas de expressão (COLLAÇO; GRASSI; MASSAD, 2019).

Porém, é importante ressaltar que cada adolescente é único no seu modo ser no mundo, o que nos leva a reconhecer que cada um atravessa e é atravessado pelas mudanças e dilemas da adolescência a partir de suas próprias experiências. Portanto, diante de alguém com comportamento autolesivo, precisamos evitar não só julgamentos e críticas, mas também comparações que tendam a minimizar o sofrimento dessa pessoa.

Como identificar se um adolescente se autolesiona

Identificar se um adolescente está se auto lesionando não é uma tarefa simples, pois, geralmente, o sujeito que realiza esse tipo de comportamento busca manter suas lesões escondidas, seja por vergonha ou por entender que tal comportamento não é aprovado pela sociedade. Por isso, conforme Quesada et al. (2020), é importante observar: 

  • Uso de vestimentas para cobrir partes lesionadas do corpo, mesmo em ambientes quentes;

  • Resistência a atividades físicas que antes eram praticadas pela pessoa, especialmente naquelas em que as partes lesionadas poderão ficar à mostra;

  • Frequente isolamento social; 

  • Quadros reiterados de impulsividade, irritabilidade e agressividade;

  • Baixa autoestima, com autocrítica exacerbada;

  • Autocobrança excessiva; 

  • Falta de motivação; 

  • Presença de algum transtorno alimentar;

  • Alterações de sono;

  • Ausência ou diminuição da higiene pessoal, dentre outros.

Os autores ressaltam ainda que fatores externos e alheios à vontade da pessoa também devem ser considerados como ocorrência de bullying ou cyberbullying, falta de afeto e atenção familiar, ausência de reconhecimento e valorização.

Como ajudar uma pessoa com comportamento autolesivo?

Diante de uma pessoa que apresenta comportamento autolesivo, Quesada et al. (2020) recomendam que é importante proporcioná-la um ambiente acolhedor, tranquilo e afetivo, desprovido de julgamentos, críticas e rejeição. Em outras palavras, é importante estabelecer uma relação de confiança e respeito, baseada em um bom diálogo, com demonstração de atenção, preocupação e carinho, pois nesse momento, o que a pessoa mais precisa é de afeto e suporte social.

Os autores reforçam ainda que é preciso compreender os sentidos da prática da automutilação, não como algo isolado, mas a partir do contexto social no qual o indivíduo está inserido, o que vai de encontro com a importância de incluir a rede de apoio (familiares/responsáveis, profissionais de saúde, profissionais de educação, dentre outros) no processo de cuidado e tratamento dessa pessoa. 

Uma ação que também pode ser adotada é a aplicação dos Primeiros Socorros Emocionais (PSE) que se referem a um conjunto de ações simples que qualquer pessoa pode ter para ajudar alguém em uma situação de crise ou sofrimento emocional, a saber: oferecer apoio e ajuda; perguntar o que a pessoa precisa ou como acha que você pode ajudar; ouvir com atenção sem forçar ninguém a falar nada e nem julgar o que ela diz; falar coisas que possam ajudá-la a se sentir melhor ou ficar mais calma; ajudar a pessoa a ter o apoio ou atendimento que precisa; proteger a pessoa (SAÚDE MENTAL DE ADOLESCENTES, 2021).

É especialmente a partir do acolhimento, respeito às diferenças, apoio e suporte social, desprovidos de críticas e julgamentos, que podemos ofertar, a uma pessoa que recorre à automutilação, os cuidados necessários para que ela possa entrar em contato com suas experiências de modo a acionar seu autossuporte (recursos) e potencial para ressignificar seu sofrimento. 

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Referências 

BRASIL. Lei Federal Nº 13.819, de 26 de abril de 2019. Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13819.htm>. Aceso em: 12 abril, 2021.

COLLAÇO, F.; GRASSI, A.; MASSAD, A. Automutilação na adolescência e a Gestalt-terapia. Anais do EVINCI – UniBrasil, Curitiba, v.5, n.1, p. 450-450, out. 2019.

QUESADA, A. A.; NETO, C. H. A.; OLIVEIRA, J. M. O.; GARCIA, M. S. Noções gerais sobre a automutilação. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2020. 

SAÚDE MENTAL DE ADOLESCENTES. Instituo Vita Alere. Disponível em: < https://www.podefalar.org.br/me-cuidar>. Acesso em: 11 abr., 2021.

ZANELLA, R.; ZANINI, M. E. B. Atendendo adolescentes na contemporaneidade. In: ZANELLA, R. (Org.). A clínica gestáltica com adolescente: caminhos clínicos e institucionais. São Paulo: Summus, 2013, p.59-76.