De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2006), emergências são situações inesperadas que comprometem a vida e/ou a integridade física de uma ou de várias pessoas, e que demandam uma intervenção especializada. Já os desastres representam alterações intensas na vida das pessoas, nos bens, nos serviços e no meio ambiente, causadas por um acontecimento natural ou geradas pelo homem, que excedem a capacidade de resposta da comunidade afetada.
Como surgiu o interesse em intervir em situações de desastres?
Desde o princípio da civilização, o ser humano tem que lidar com situações adversas de grandes impactos gerados por fenômenos naturais e humanos. Terremotos, enchentes, epidemias, guerras e grandes acidentes são exemplos de eventos do tipo. Na modernidade, o estudo dos desastres e seus efeitos ganham interesse da ciência.
Podemos citar as pesquisas de Stierling (1909), psiquiatra que buscava compreender os efeitos de acidentes de trabalho em mineradores; a pesquisa de Prince (1920) sobre os efeitos do desastre naval em Halifax, no Canadá; e as pesquisas de Linderman (1944) sobre luto em famílias que perderam entes em um incêndio em boate (CFP, 2006).
O interesse da psicologia em compreender os efeitos de emergências e desastres foi crescendo ao longo do século XX, juntamente com a ampliação de estudos sociológicos sobre o tema.
Como compreender um desastre?
Vamos tomar como base a pandemia da COVID-19. Provavelmente você ouviu em algum momento que “estamos no mesmo barco”. Essa afirmação é verdadeira? Certamente não. Apesar de estarmos em uma situação generalizada de desastre biológico, cada grupo populacional e cada comunidade possui distintos recursos para lidar com essa demanda. Esses recursos envolvem apoio institucional, disposição de serviços de saúde e assistência social, nível socioeconômico e características histórico-culturais.
Pois bem, a sociologia dos desastres contribuiu bastante para que houvesse uma desnaturalização da compreensão dos fenômenos adversos. Se em uma perspectiva inicial, os desastres eram avaliados pela potência do evento ameaçador, atualmente é impensável avaliar qualquer desastre sem compreender seu impacto em cada grupo com suas especificidades e vulnerabilidades particulares.
Ainda nessa perspectiva, Valencio et al. (2009) nos relembram que, se em um momento o foco dos estudos era o conjunto de efeitos negativos em um desastre, paulatinamente passamos a nos interessar também pelas estratégias de resistência, solidariedade e organização da população afetada. Como a psicologia é uma área comprometida com a análise dos processos psicológicos contextualizados em um cenário histórico e cultural, você percebe como essa desnaturalização dos desastres nos traz um campo bastante amplo de atuação?
Como descrever a contribuição da psicologia?
A psicologia das emergências e dos desastres é uma área relativamente nova, se considerarmos outros campos mais tradicionais. Dentre as várias formas de compreensão da nossa prática nessas situações, podemos descrever as possibilidades de exercício nos distintos momentos de um desastre.
A psicologia desenvolveu recursos para atuação em todos os momentos de um desastre: pré-desastre, desastre (considera-se aqui o período enquanto durar o evento acrescido das 72h posteriores) e pós-desastre. Esse campo bebe de áreas como a psicologia social, psicologia comunitária, psicologia clínica, dentre outras.
a) Atuação no pré-desastre
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Capacitação e treinamento à população;
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Colaboração com planos municipais de habitação, bem como assessoramento dos planejamentos e intervenções da Defesa Civil;
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Estudos sobre percepção de risco, para compreender como cada comunidade entende a potencialidade de danos de eventos desastrosos, bem como reagiria diante dessa compreensão;
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Seleção de pessoal para atuar em equipes de saúde, segurança, defesa e assistência.
b) Atuação durante o desastre
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Atendimentos de intervenção de crise às vítimas (trabalha-se aqui demandas de saúde mental, luto, dentre outras que possam surgir);
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Diálogo e assessoramento com a mídia;
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Encaminhamento e monitoramento das famílias para serviços especializados;
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Atendimento às equipes profissionais;
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Primeiros socorros psicológicos.
c) Atuação no pós-desastre
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Estudos e avaliações de impacto psicológico dos desastres;
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Atividades de desenvolvimento comunitário favorecendo a resiliência da comunidade;
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Assessoramento das políticas públicas, especialmente a Defesa Civil, para identificar fragilidades e pensar melhorias que preparem a comunidade a lidar melhor com eventos semelhantes.
Como a área é organizada no Brasil?
O Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2005) estabelece a obrigatoriedade do profissional de psicologia em trabalhar em situações de desastres. Até o início da pandemia, não podíamos realizar intervenções como essa no formato remoto, porém com o distanciamento generalizado fica difícil manter essa restrição, não é mesmo? Por isso, em 2020, o CFP revogou essa limitação, permitindo que nós atuemos em situações de emergências e desastres mesmo à distância!
Apesar da importância da área, ainda não há uma especialidade reconhecida da psicologia no campo das emergências e desastres, de acordo com as resoluções do CFP. Porém, percebemos que esse campo cada vez gera interesse, debates e orientações. Destacam-se algumas publicações oficiais para nós psicólogas e psicólogos nos aprimorarmos na área:
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2006 – I Seminário Nacional de Psicologia das Emergências e dos Desastres
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2011 – II Seminário Nacional de Psicologia das Emergências e dos Desastres
Ah, a psicologia das emergências e desastres cresceu tanto no Brasil que já temos associação! Em 2011 foi fundada a Associação Brasileira de Psicologia nas Emergências e Desastres (ABRAPEDE) e ela segue ativa reunindo profissionais interessadas(os) em colaborar e aprender sobre esse campo.
Para finalizar, temos uma novidade! O CFP, através do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas, já pôs em consulta pública e em breve publicará as Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Gestão Integral de Riscos, Emergências e Desastres!
Gostou? Deu para ver o quanto esse campo é rico e como tem potencial para crescer. No período da pandemia da COVID-19, temos discutido e desenvolvido práticas e pesquisas sobre atuação em situações de desastres, então conteúdos sobre essa temática vão ficar cada vez mais presentes na nossa vida profissional.
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Referências
Associação Brasileira de Psicologia nas Emergências e Desastres [ABRAPEDE]. Associação Brasileira de Psicologia nas Emergências e Desastres. Disponível em: http://www.abrapede.org.br/. Acesso em 23 de abril de 2021.
Conselho Federal de Psicologia [CFP]. Resolução CFP Nº 010/05. Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília, DF: CFP, 2005.
Conselho Federal de Psicologia [CFP]. I Seminário Nacional de Psicologia das Emergências e dos Desastres. Brasília, DF: CFP, 2006.
STIERLIN, E. Psycho-neuropathology as a Result of a Mining Disaster. Zurich: University of Zurich, 1909.
VALENCIO, N. et al. (orgs.). Sociologia dos desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: RiMa Editora, 2009.