O nascimento da Psicologia baseada em evidências
Historicamente, a avaliação das evidências relativas à prática psicoterápica realizada por Eysenck (1952) pode ser considerado o nascimento do que conhecemos hoje como Psicologia baseada em evidências. Através de uma revisão realizada com 19 estudos empíricos, o autor constata a incapacidade dos trabalhos em indicar a eficácia das psicoterapias no tratamento de pacientes neuróticos, o que estimulou a produção de dados empíricos sobre o assunto (EYSENCK, 1952; LEONARDI & MEYER, 2015).
As conclusões de Eysenck (1952) levantaram questões cruciais a serem adotadas nas pesquisas em psicologia nos anos subsequentes, para o seu desenvolvimento e o direcionamento da prática clínica. Strupp (1964) reconheceu essas questões e reiterou que o avanço das pesquisas em psicologia precisava abordar questões como:
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A eficácia relativa de diferentes métodos de terapia;
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Os tipos de mudanças associadas a intervenções terapêuticas específicas e;
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Como as variáveis ??do paciente e do terapeuta influenciam esses achados.
Durante a segunda metade do século 20, novos estudos de revisão objetivaram avaliar e comparar diferentes práticas psicoterápicas e seus efeitos sobre diferentes condições clínicas. Em sua maioria, os resultados apontaram que diferentes abordagens psicoterápicas possuíam eficácia semelhante e significativa sobre os pacientes (LUBORSKY, SINGER & LUBORSKY, 1975; SMITH, GLASS & MILLER, 1980).
Apesar do número de pesquisas e da significativa melhora na qualidade dos trabalhos publicados, ainda havia uma desconfiança em relação aos métodos empregados e a qualidades das evidências geradas pelos estudos sobre a eficácia geral das diferentes práticas clínicas.
Em 1993, uma série de esforços por parte de uma força tarefa formada pela APA (American Psychological Association) buscava definir e identificar tratamentos empiricamente validados, aproximando-se de um conceito mais moderno de Psicologia baseada em evidências (LEONARDI & MEYER, 2015).
Mas afinal, o que é Psicologia baseada em evidências?
De maneira geral, pode-se definir a Psicologia baseada em evidências como a integração do conhecimento adquirido através de pesquisas empíricas realizadas com base em critérios rigorosos de execução, controle de variáveis e análise de resultados. A partir desse raciocínio, as decisões tomadas pelos profissionais em sua prática psicoterápica clínica são guiadas por esse conhecimento, a fim de garantir os melhores resultados para o paciente (APA et al., 2006; CPA et al., 2012).
O acesso a esses tipos de conhecimento é preferencialmente obtido através de revistas indexadas e revisadas por pares, na forma de ensaios clínicos, revisões sistemáticas/metanálises e diretrizes de práticas clínicas. O rigor empregado na obtenção e na aplicação dos conhecimentos garante o respeito à dignidade e aos demais princípios éticos próprios da relação terapeuta-paciente e da prática psicoterápica (CPA et al., 2012; ROUSSEAU & GUNIA, 2016).
Pensando na importância de uma avaliação adequada das evidências que guiam a prática psicológica, a Associação canadense de Psicologia (CPA et al., 2012) estabeleceu uma hierarquia dos tipos de evidências a serem utilizadas pelos profissionais. Em sua organização, é recomendado aos psicólogos utilizar prioritariamente estudos desenvolvidos sob o mais alto nível de rigor metodológico, apesar de os outros níveis também possuírem algum nível de confiabilidade.
A CPA et al. (2012) organizou a hierarquia das evidências de pesquisa relacionadas à prática clínica da seguinte forma:
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Síntese de conhecimentos sistematicamente combinados com alta validade interna e externa;
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Estudos de pesquisa primária que, coletivamente, tem alta validade interna e externa;
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Estudos de pesquisa primários que, coletivamente, tem uma validade interna e externa limitada;
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Consenso de especialistas com base em procedimentos formais;
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Dados não publicados, opinião profissional e experiência prévia.
É importante notar que a lista está em ordem decrescente de qualidade, nesse sentido o item 1 representa o mais alto nível de evidência e deve ser priorizado pelos profissionais no tratamento dos pacientes. Por outro lado, o item 5 representa o mais baixo nível de evidência, devendo ser utilizado com cautela e apenas em último caso.
Destaca-se também que a validade interna de um estudo se refere a sua capacidade de estabelecer uma relação de causalidade entre a variável dependente a variável independente, como se observa no uso de um tratamento e no resultado observado no paciente. A validade externa, por sua vez, expressa a capacidade de generalização dos resultados obtidos, ou seja, sua aplicação prática na atuação do psicólogo (SLACK & DRAUGALIS, 2001).
Exemplos de práticas baseadas em evidências na psicologia
Com o número crescente de publicações, como revisões sistemáticas/metanálises e ensaios clínicos randomizados, há práticas psicológicas bem sustentadas pela literatura científica, por exemplo:
O uso da Análise do comportamento aplicada (ABA) se mostrou significativamente eficaz no tratamento de crianças com Transtorno do espectro autista, conforme relatado em uma metanálise realizada por Makrygianni et al. (2018) baseada em 29 estudos.
A eficácia da Terapia cognitivo-comportamental (TCC) no tratamento de uma série de condições (BUTLER et al., 2006), com destaque para o tratamento de transtornos de ansiedade (VAN INGEN, FREIHEIT & VYE, 2009; Otte, 2011) e transtornos depressivos (JAKOBSEN et al., 2011).
Por fim, vale mencionar a eficácia da Terapia comportamental dialética (DBT) no tratamento de pacientes com Transtorno de personalidade borderline e dependentes químicos, conforme descrito por Linehan et al. (1999).
Considerações finais
O uso de métodos psicoterápicos baseados em evidência é imprescindível para garantir o status da psicologia enquanto ciência e profissão, especialmente em uma época permeada por um clima cultural negacionista e o constante surgimento de práticas de caráter duvidoso. É dever, não apenas de psicólogos, mas de profissionais da saúde de todas as naturezas, pautar suas práticas em métodos científicos.
A utilização de técnicas e instrumentos comprovadamente eficazes possui impacto em várias dimensões da sociedade, desde o desenvolvimento de políticas públicas e assistencialistas, até o uso da ciência enquanto mecanismo de transformação e manutenção social.
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Referências
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BUTLER, Andrew C. et al. The empirical status of cognitive-behavioral therapy: a review of meta-analyses. Clinical psychology review, v. 26, n. 1, p. 17-31, 2006.
CANADIAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION et al. Evidence-based practice of psychological treatments: A Canadian perspective. Canada: CPA Task Force on Evidence-Based Practice of Psychological Treatments, 2012.
EYSENCK, Hans J. The effects of psychotherapy: an evaluation. Journal of consulting psychology, v. 16, n. 5, p. 319, 1952.
JAKOBSEN, Janus Christian et al. The effects of cognitive therapy versus ‘no intervention’for major depressive disorder. PLoS One, v. 6, n. 12, p. e28299, 2011.
LEONARDI, Jan Luiz; MEYER, Sonia Beatriz. Prática baseada em evidências em psicologia e a história da busca pelas provas empíricas da eficácia das psicoterapias. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 35, n. 4, p. 1139-1156, 2015.
LINEHAN, Marsha M. et al. Dialectical behavior therapy for patients with borderline personality disorder and drug-dependence. American Journal on Addictions, v. 8, n. 4, p. 279-292, 1999.
LUBORSKY, Lester; SINGER, Barton; LUBORSKY, Lise. Comparative studies of psychotherapies: Is it true that everyone has won and all must have prizes?. Archives of general psychiatry, v. 32, n. 8, p. 995-1008, 1975.
MAKRYGIANNI, Maria K. et al. The effectiveness of applied behavior analytic interventions for children with Autism Spectrum Disorder: A meta-analytic study. Research in Autism Spectrum Disorders, v. 51, p. 18-31, 2018.
OTTE, Christian. Cognitive behavioral therapy in anxiety disorders: current state of the evidence. Dialogues in clinical neuroscience, v. 13, n. 4, p. 413, 2011.
ROUSSEAU, Denise M.; GUNIA, Brian C. Evidence-based practice: The psychology of EBP implementation. Annual Review of Psychology, v. 67, p. 667-692, 2016.
SLACK, Marion K.; DRAUGALIS JR, Jolaine R. Establishing the internal and external validity of experimental studies. American Journal of Health-System Pharmacy, v. 58, n. 22, p. 2173-2181, 2001.
SMITH, Mary Lee; GLASS, Gene V.; MILLER, Thomas I. The benefits of psychotherapy. Johns Hopkins University Press, 1980.
STRUPP, Hans H. The outcome problem in psychotherapy: A rejoinder. 1964.
VAN INGEN, Daniel J.; FREIHEIT, Stacy R.; VYE, Christopher S. From the lab to the clinic: Effectiveness of cognitive-behavioral treatments for anxiety disorders. Professional Psychology: Research and Practice, v. 40, n. 1, p. 69, 2009.