Uma sociedade cada vez mais livre para expressar sua diversidade exige profissionais de Saúde prontos para atender às demandas dentro de suas particularidades. No Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro, essa questão fica mais latente.
Esse é o momento oportuno para olharmos com mais atenção para esse grupo social e entender sua trajetória. Existem situações que você precisa saber antes de atender pessoas trans nos serviços de saúde para entender o lugar do qual partem. Um ponto comum é o histórico de preconceito e discriminação que, por vezes, podem colocá-las em um lugar de desumanização.
A trajetória marcada por violências simbólicas e físicas afastam cada vez mais essas pessoas de um direito fundamental e assegurado na Constituição, o direito à saúde. Estudos apontam que discriminação por parte dos profissionais da rede de saúde, o desrespeito ao nome social e o diagnóstico patologizante no processo transexualizador são os principais motivos que impedem pessoas trans do acesso universal, integral e equânime à saúde.
Cabe aos profissionais de saúde, em toda a rede de atenção, atuar na transformação dessa realidade. É assegurar o cumprimento do que determina a legislação em todo o atendimento a mulheres e homens transexuais, respeitando em primeiro lugar sua condição de indivíduo membro da nossa sociedade.
O que é transexualidade
O termo transexual é usado para se referir ao indivíduo que não se identifica com o gênero designado pelo seu sexo biológico e procura fazer a transição para o gênero com o qual se identifica, de fato. No caso de mulheres transexuais, são mulheres que não se identificam com os genitais biológicos masculinos nem com as atribuições socioculturais atribuídas a esse gênero. No caso dos homens trans, eles não se identificam com genitais biológicos femininos nem com as atribuições socioculturais para esse gênero.
Dessa forma, existe a busca pela transição para o gênero de sua identificação através de intervenções hormonais e cirúrgicas. Um artigo publicado na revista Physis em 2017 destaca que o gênero é diferente do sexo biológico devido à construção social correspondente:
“Entende-se que a vivência de um gênero (sociocultural) discordante com o que se esperaria de alguém de determinado sexo biológico é uma questão de identidade de gênero (JESUS, 2012). Essa situação se aplica ao caso das pessoas travestis e transexuais, que são não cisgênero ou “transgênero”, ou mais popularmente, trans, por não se identificarem com o gênero que lhes foi determinado pelo sexo biológico. Ainda segundo o autor, as travestis são pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um não gênero.”
VEJA TAMBÉM: 5 ações para melhorar o atendimento ao público LGBTI+
Como atender melhor à população trans
Entender as particularidades que envolvem a identificação da transexualidade é fundamental para oferecer um atendimento humano, respeitoso e integral a esse grupo. O caminho começa com o tratamento respeito manifestado pelo uso do nome social, escolhido pelo indivíduo sobre a forma com que pretende ser tratado. Nome confere existência, logo, respeita também a identidade que a pessoa trans assumiu para si.
Falamos mais sobre isso a seguir.
I. Orientação sexual e identidade de gênero são direitos de todas as pessoas e devem ser respeitados e reconhecidos.
Orientação sexual e identidade de gênero são elementos distintos de uma mesma individualidade, mas não resumem o indivíduo. A sexualidade é apenas um dos aspectos da vida e da saúde de pessoas trans, então é importante que não se restrinja o atendimento do paciente apenas a esse fator.
Outros problemas de saúde podem acometer pessoas trans, como viroses, diabetes, hipertensão, assim como qualquer outra pessoa está vulnerável. Atente-se para não reproduzir o estereótipo de que os problemas de saúde dessa população se reduzem à sexualidade.
II. A população trans tem assegurado o direito à saúde, assim como qualquer grupo social.
O direito à saúde é constitucional e não favorece nem privilegia por cor, gênero, classe social ou orientação sexual. Para além disso, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, por meio da Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, garantindo o direito à saúde integral, humanizada e de qualidade no Sistema Único de Saúde (SUS).
O SUS também garante o Processo Transexualizador, assegurado por meio das Portarias nº 1.707 e nº 457, de agosto de 2008, e ampliado pela Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Nesse caso, é assegurado o atendimento integral de saúde a pessoas trans, desde o uso do nome social até a cirurgia de adequação do corpo biológico às identidades de gênero e social, passando pela hormonioterapia.
Esse atendimento é estruturado pela:
- Atenção básica – É a porta de entrada prioritária do usuário na rede e responsável pela coordenação do cuidado e pela realização da atenção contínua da população sob seus cuidados. Encaminha o/a paciente para os serviços especializados no Processo Transexualizador;
- Atenção Especializada – Conjunto de diversos pontos de atenção com diferentes densidades tecnológicas para a realização de ações e serviços de urgência, ambulatorial especializado e hospitalar. No Processo Transexualizador, deve realizar o acolhimento, cuidado, acompanhamento do/da usuário/a para realização de procedimentos ambulatoriais e/ou cirúrgicos.
Importante que o profissional de saúde envolvido no atendimento observe os fatores biológicos do indivíduo no atendimento. Cartilha do Ministério da Saúde chama a atenção que mulheres transexuais, mesmo quando já tenham feito modificações corporais e/ou cirurgias de redesignação sexual, têm indicação para realizar exames para prevenção do câncer de próstata. Da mesma forma, homens trans podem requerer atendimento ginecológico tanto de caráter preventivo quantopara tratamento de problemas referentes a essa especialidade.
III. Nome social existe e reconhecê-lo é respeitar a dignidade e garantir acesso do/da paciente aos serviços de saúde.
O nome confere a existência de pessoas. No caso de pessoas trans, admite a identidade com qual se identifica. Reconhecer esse nome social é o primeiro gesto de acolhimento e respeito, o que já foi assegurado pelo Ministério da Saúde por meio da Carta de Direitos dos Usuários do SUS, instituída por meio da Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009.
Segundo o dispositivo, é direito do usuário do SUS ser identificado e atendido nas unidades de saúde pelo nome de sua preferência, independentemente do registro civil ou de decisão judicial. O ministério também permite, desde 2012, a impressão do Cartão SUS com o nome social do usuário.
A recomendação do Ministério da Saúde, então, é que o profissional de saúde respeite o nome social impresso no cartão SUS. Em caso de dúvida, que pergunte como as pessoas trans preferem ser chamadas. Mas, independentemente, todo prontuário deve conter um espaço específico para preenchimento do nome social, tão destacado quanto o espaço para preenchimento do nome civil.
VEJA TAMBÉM: O câncer de mama nos homens e em pessoas transexuais
IV. Reconheça a identidade de gênero do/da paciente.
É fundamental que os usuários das unidades de saúde sejam reconhecidos em sua identidade de gênero, ou com o gênero com o qual se identificam. Esse reconhecimento passa por atendimento acolhedor e informativo, de modo que, quando necessário, o/a paciente seja encaminhado/a à rede de atenção especializada para procedimentos de sua competência. Também passa pelo cuidado em caso de internação, em que pessoas trans devem ser alocadas em enfermarias compatíveis com sua identidade de gênero.
Essas práticas estimulam a confiança do/a usuário/a do sistema de saúde. Com isso, abre caminho para que pessoas trans passem a adotar uma postura mais cuidadosa diante de suas demandas na área de saúde, sentindo segurança para buscar atendimento sem medo do não-acolhimento ou do desrespeito a suas demandas.
V. É preciso lidar com as questões referentes às modificações corporais – seja a demanda por procedimentos do tipo ou a necessidade de administrar problemas causados por eles.
É comum que pessoas trans cheguem às unidades de saúde já tendo realizado algum procedimento de modificação corporal por conta própria. Por exemplo, geralmente mulheres transexuais usam hormônios femininos sem especificação médica e aplicam silicone industrial em diferentes partes do corpo.
Em homens trans, por outro lado, são comuns aquisição de testosterona em academias de ginástica e consumo de hormônios masculinos de origem animal para uso veterinário. Há relatos também de danos ao tecido mamário e ao músculo peitoral devido ao uso prolongado de faixas compressoras para disfarçar os seios.
Além da realização de procedimentos em condições pouco adequadas, o profissional de saúde pode se deparar também com casos de automutilação devido ao sofrimento do indivíduo por não se reconhecer no próprio corpo que possui.
VI. Lembre-se do princípio de integralidade proposto pelo SUS.
O princípio de integralidade proposto pelo Sistema Únido de Saúde (SUS) considera as dimensões biológica, cultural e social do usuário. Sendo assim, é fundamental que você, profissional de saúde, leve esses fatores em conta no atendimento a pessoas trans.
Os agravos à saúde de pessoas LGBT têm origem em determinantes sociais, devido às frequentes violações de direito de pessoas que são consideradas desviantes da sociedade devido à sua orientação ou identidade de gênero. Reconhecer esses danos abre caminho para a assistência integral na medida que entende o indivíduo em seu contexto biopsicossocial e permite intervenção adequada às demandas apresentadas.
E é fundamental lembrar que pessoas trans possuem também outras características que dão dimensão de sua individualidade, como idade, raça, religião, nível socioeconômico, atividades que realiza. A atenção integral considera esses fatores e situa o/a paciente em outros programas de saúde.
Referências
Cartilha de Atenção Integral à Saúde da População Trans
O SUS e a população LGBTI+ | Colunista
Acesso da população LGBTI+ aos serviços de saúde | Colunista