Além de um ciclo: A gestão da assistência farmacêutica e o sistema público de saúde | Colunista

Pense em todos os conteúdos que você, profissional ou estudante, precisa conhecer ao longo da sua vida. Se você atua nas Ciências Farmacêuticas, certamente irá pensar em Farmacologia, Bioquímica, Manipulação, Cálculos e Tecnologias.

Porém, uma grande área vem ganhando espaço nos últimos anos: a Assistência Farmacêutica… e em consequência, os processos de gestão. Mas, afinal, como podemos nos preparar para este tema tão importante?

Muito provavelmente você aprendeu na graduação que a Assistência Farmacêutica pode ser resumida em um conjunto de atividades que compõem um ciclo, facilitando a didática e a aprendizagem ao longo do curso. Ao longo deste texto vamos conhecer alguns conceitos para sua preparação para provas e concursos, bem como para sua experiência profissional.

Diversos estudos demonstram a importância que os medicamentos representam para o sistema de saúde. Vieira (2007) afirma que “os medicamentos são considerados como a principal ferramenta terapêutica para manutenção ou recuperação das condições de saúde da população, tendo o farmacêutico como o principal profissional habilitado para sua gestão, promovendo o uso racional”.

Entretanto, para que haja a promoção do uso racional, é necessário garantir o acesso da população aos medicamentos essenciais através de atividades específicas, executadas por um sistema de gestão eficaz. Estas atividades são definidas pela Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), estabelecidas pelo Conselho Nacional de Saúde como “um conjunto de ações voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde, tanto individual como coletiva, tendo o medicamento como insumo essencial e visando ao acesso e ao seu uso racional” (Resolução CNS n° 338/2004).

As atividades para execução da Assistência Farmacêutica ocorrem em uma sequência ordenada e cíclica, que percorrem desde a seleção até a utilização dos medicamentos, permitindo o acesso e o uso racional para a população. A execução imprópria de uma atividade prejudica todas as outras, comprometendo seus objetivos e resultados. Desta forma, os serviços não serão prestados adequadamente, acarretando em insatisfação dos usuários, demonstrando uma gestão inadequada, que pode ser mensurada a partir da falta de medicamentos e consequente prejuízo às políticas de saúde.

A reorientação da Assistência Farmacêutica, estabelecida na Política Nacional de Medicamentos (PNM) em 1998, diz respeito ao deslocamento do foco estritamente logístico para incluir a melhora da gestão e a qualidade dos serviços, promovendo o acesso dos cidadãos aos medicamentos essenciais, com uso racional, tanto do ponto de vista terapêutico quanto dos recursos públicos.

A qualidade da execução das atividades que compõem o Ciclo da Assistência Farmacêutica pode ser avaliada com a utilização de indicadores, que servem como referência e comparação dos serviços prestados, permitindo avaliação da gestão e dos recursos aplicados nas políticas públicas relacionadas ao uso dos medicamentos.

O ciclo da Assistência Farmacêutica evoluiu ao longo dos anos, através das políticas públicas de medicamentos e da própria evolução do sistema de saúde brasileiro, antes e depois da criação do SUS. Observamos então um destaque das atividades relacionadas a Farmácia no SUS, que vai muito além de apenas garantir o abastecimento de medicamento nas unidades públicas.

Mas afinal, por que usamos o termo “Gestão da Assistência Farmacêutica” quando nos referimos a esta atividade profissional e aos conteúdos das principais provas?

De acordo com Leite e Guimarães (2011), “gestão é um processo técnico que exige capacidade analítica com base em conhecimento científico”. Para que uma decisão venha a ser tomada é necessário utilizar informações referentes à situação de saúde e ao uso de medicamentos de uma determinada população, de forma sistematizada, atualizada e com base em métodos epidemiológicos e sociológicos.

O objetivo principal da Assistência Farmacêutica será sempre a promoção do uso racional de medicamentos essenciais para toda a população. Devemos ainda lembrar que a integralidade é um dos princípios fundamentais do SUS e a falta ou desabastecimento de medicamentos e insumos essenciais certamente irá prejudicar diversos tratamentos de saúde, trazendo inúmeros prejuízos tanto para gestão pública quanto privada.

Desta forma, precisamos de um processo de gestão extremamente eficaz e eficiente para garantir que os medicamentos possam estar disponíveis nas unidades de saúde em quantidade, qualidade e tempo hábil para ofertar serviços de saúde adequados. Qualquer problema ou falha na execução destas atividades irá gerar um efeito em cascata por todo o ciclo. Lembra dos problemas para fornecimento de máscaras, álcool gel e medicamentos durante a pandemia? É apenas um dos inúmeros exemplos que podemos utilizar para demonstrar a importância da gestão na Assistência Farmacêutica.

Para facilitar o entendimento, dividimos as atividades do ciclo da Assistência Farmacêutica em duas grandes áreas: logística e clínica, que se complementam, fornecendo informações para a sequência das atividades. As atividades clínicas são representadas pela seleção e dispensação de medicamentos, que permitem escolher quais produtos poderão ser disponibilizados para a população, bem como as principais orientações para o uso racional.

As atividades logísticas (programação, aquisição, distribuição e armazenamento) tem como objetivo principal a disponibilidade dos medicamentos e insumos em quantidade e qualidade para os serviços de saúde, garantindo assim o abastecimento.

Diversos autores consideram que a SELEÇÃO é a etapa mais importante de todo o ciclo, pois uma escolha errada em uma relação de medicamentos poderá trazer inúmeros prejuízos financeiros e de tratamentos em saúde. Assim, pode ser compreendida como a atividade principal para a escolha dos medicamentos e insumos que estarão disponíveis em uma determinada unidade, região, Estado ou município.

O que não podemos esquecer sobre seleção de medicamentos? Devemos utilizar critérios epidemiológicos, dados das unidades de saúde, além do perfil e principais características da população que será assistida.

Oficialmente, temos a Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT), responsável pelo processo de padronização de medicamentos e insumos. Teremos então as relações de medicamentos, bem como os protocolos clínicos para sua utilização. Nas instâncias do SUS a referência máxima é a Relação Nacional de Medicamentos (RENAME), que servirá como guia para as outras atividades do ciclo em Estados e municípios.

A etapa seguinte, a PROGRAMAÇÃO, consiste em estimar e quantificar os medicamentos selecionados para o atendimento dos usuários, de acordo com demanda dos serviços e por determinado período de tempo. Deve-se levar em consideração as necessidades de cada serviço e os recursos disponíveis, pois uma programação inadequada reflete diretamente sobre o abastecimento e o acesso da população aos medicamentos essenciais.

Sabe a farmácia com as prateleiras vazias que você provavelmente conheceu no seu estágio? Aqui temos um grande exemplo desta etapa na cadeia logística. Quando abordamos programação de medicamentos e insumos, temos que considerar os principais métodos utilizados para quantificação destes itens: consumo histórico, perfil epidemiológico, consumo ajustado e oferta de serviços. Vale a pena relembrar as principais características destes métodos no seu planejamento de estudos.

A partir da quantidade programada, segue-se para a AQUISIÇÃO, etapa que consiste em um conjunto de procedimentos pelos quais se efetiva o processo de compra dos medicamentos, a fim de manter a regularidade do sistema de abastecimento, a partir das especificações técnicas dos produtos e da seleção dos fornecedores. A aquisição de medicamentos na Administração Pública segue as normas da Lei n? 8.666/93, que regulamenta licitações e contratos nas três esferas governamentais.

Esta é uma etapa que impacta diretamente nas instâncias do SUS, pois as modalidades de licitação são abordadas nas principais provas do país. Lembrando que estamos em um período de calamidade pública, em razão da pandemia, podendo então abrir exceção para compras emergenciais de medicamentos, insumos e prestação de serviços. Infelizmente, temos a abertura para esquemas de corrupção envolvendo recursos da saúde, que certamente você acompanhou pela imprensa.

O ARMAZENAMENTO pode ser definido como um conjunto de procedimentos técnicos e administrativos para assegurar as condições adequadas de conservação dos produtos. Envolve desde o recebimento, conferência, estocagem e controle de estoque. Vieira (2010) afirma que a maior parte dos municípios apresentam graves problemas quanto ao armazenamento e controle de estoque, sendo este o principal entrave para o desenvolvimento da Assistência Farmacêutica no país.

Inúmeras unidades públicas de saúde apresentam péssimas condições de armazenamento, não garantindo a qualidade e segurança de medicamentos e insumos. O resultado: desperdício de recursos públicos, desabastecimento, medicamentos vencidos e farmácias com prateleiras vazias. Outro ponto: existe o Sistema HÓRUS para gerenciamento e avaliação dos medicamentos nas instâncias do SUS, que facilita os processos de gestão.

A atividade de DISTRIBUIÇÃO compreende o transporte e abastecimento de medicamentos e insumos às unidades de saúde em quantidade, qualidade e tempo oportuno. Deve seguir um cronograma previamente estabelecido, permitindo atender com eficiência as situações de urgência e emergência.

Outro ponto importante sobre distribuição está relacionado com a área hospitalar, incluindo os principais sistemas e características: coletivo, unitário, individualizado e misto. Este conteúdo sempre foi muito abordado pelas principais bancas, vale a pena relembrar nos seus estudos.

O Ciclo da Assistência Farmacêutica encerra-se com a DISPENSAÇÃO, que consiste em proporcionar um ou mais medicamentos em resposta à apresentação de uma prescrição elaborada por um profissional autorizado ou indicação para um problema de saúde.

No ato da dispensação, o profissional farmacêutico deve fornecer ao usuário todas as informações necessárias para a utilização correta do medicamento, na dose certa e no tempo certo, contribuindo assim para o seu uso racional. Ressalta-se que a dispensação é atribuição exclusiva do profissional farmacêutico e somente ele pode exercer suas atividades, não sendo passível de delegação para outros profissionais.

A atividade de dispensação é o ponto chave para a promoção do uso racional de medicamentos, a farmacovigilância e a realização das atividades clínicas realizadas pelo profissional farmacêutico.

A partir deste ponto, podemos reiniciar o Ciclo da Assistência Farmacêutica, através da seleção de medicamentos, ou iniciar o processo de Farmácia Clínica… que será abordada em outro momento.

Se você chegou até aqui, lembre-se de pensar além do óbvio, dos ciclos e dos padrões. A profissão Farmacêutica evoluiu muito ao longo dos anos, exigindo profissionais capacitados e que possam apresentar resultados e soluções para os problemas de um estabelecimento de saúde, uma comunidade, ou município…. E que possa fazer a diferença na vida das pessoas.

Boa sorte em sua jornada!

Prof. Flávio Maximino
Farmacêutico, Doutorando em Saúde Coletiva, Mestre e Especialista em Gestão da
Assistência Farmacêutica. 

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Referências:

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