Descritores: enfermagem psiquiátrica, história da saúde, psiquiatria brasileira.
Desde as mais remotas épocas enfermagem e psiquiatria caminham juntas, por vezes de maneira hesitante, visto que o tratamento ao cliente baseava-se no seguimento medicamentoso e a profissão ainda não possuía ressalvas para um atendimento, devido ao não interesse explícito dos profissionais pela clientela (OLIVEIRA et al, 2003). Aqui, objetiva-se identificar os períodos percorridos pela psiquiatria ao longo dos anos, demonstrar os direitos garantidos ao cliente e a atuação do profissional enfermeiro perante o público.
Na Grécia antiga a loucura era vista como uma manifestação dos deuses, sendo reconhecida, aclamada e valorizada pela sociedade, com capacidade de ditar destinos e resolver conflitos pessoais. O início da idade média foi marcada pelas diversas maneiras encontradas para excluir todos aqueles que não se encaixavam na sociedade, transformando o aplaudido em suplicador. Nessa mesma época com o “único intuito de curar”, foram criados espaços para que estas pessoas fossem “acomodadas” (BORGES, 2013).
Este período é visto e reconhecido nos meios religiosos por apresentar a pessoa com transtorno mental como possuído, pactuado com o demônio. Passando a viver sob fortes represálias desde as físicas até as morais, afugentados, para proteção da sociedade.
Durante o período do renascimento, por volta do século XVII os conceitos começam a mudar e a sociedade se reorganizar, este momento é marcado pela política, crescimento econômico do país e capacidade de produção da população. Mais uma vez aqueles que não conseguiam se encaixar na produtividade da nação era excluído. Mantendo desde então o padrão de exclusão até o início do século XXI (BORGES, 2013).
Os primeiros passos para movimentos reformistas aconteceram entre os anos de 1978 e 1991, os grupos eram constituídos por: familiares inconformados com o tratamento ofertado e as condições de saúde que seus entes estavam submetidos; sindicalistas; estudantes principalmente aqueles que acreditavam de fato na possibilidade tratamento aos clientes em moldes dos estudos disponíveis; trabalhadores pela saturação e alternação entre violência e condições insalubres de vida e de trabalho e; finalmente a população (BORGES, 2013).
Os anos 80 foram marcados por várias realizações no campo da psiquiatria, em 1987 foi realizada a primeira conferência de saúde mental, no Rio de Janeiro, e criação do primeiro CAPS em São Paulo (BORGES, 2013). Os anos seguintes envolveram a redemocratização, criação e embasamentos através da Constituição Federal para retirar o sistema único de saúde da teoria e transforma-lo em algo real, palpável, garantindo o direito de construção de um país democrático pela união, estados, municípios e população (BRASIL, 1988).
Com o crescente processo de modernização, evidências científicas, globalização e principalmente o boom tecnológico fizeram com que o contexto de saúde mental e psiquiatria fosse repensada, encontrando respaldo na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196 onde afirma que saúde é direito de todos e dever do Estado. Assim, o modelo hospitalocêntrico de atendimento começa a ser reavaliado por nomes como Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria que defendeu a humanização para os “loucos”, Franco Basaglia defensor da inclusão social e Nise da Silveira introdutora da psicoterapia não verbal, entre outros (FERNANDES et al, 2009).
Inicialmente o projeto de Lei do então Deputado Paulo Delgado, de número 3657/1989, teve como pauta uma extinção progressiva dos chamados manicômios e criação de novos modelos de atendimento (BORGES, 2013). Porém, o projeto que virou lei trouxe novos conceitos, se caracterizando por dispor sobre os direitos e redirecionando os cuidados da assistência. É composta por 13 artigos que regulamentam o atendimento, os tipos de internações, reabilitação social e pesquisa científica sobre o assunto (BRASIL, 2001). Portanto, a mesma é caracterizada por regulamentações e é por vezes relacionada às lutas antimanicomiais de forma equivocada.
Assim, o processo de desinstitucionalização iniciou-se a partir da redução dos leitos em instituições privadas psiquiátricas, depois da integração do programa “De volta para casa” sendo reafirmada com a criação da lei Federal de nº 10.708/2003 encaminhada pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva, que garante de forma efetiva a reinserção social e de um auxílio-reabilitação para os egressos acometidos por transtorno mental, para assim, aumentar o objetivo de todos os projetos e leis acerca dos clientes que é a promoção da autonomia e do autocuidado (BRASIL, 2003).
Sabe-se que o processo de reintegração social é um trabalho árduo e requer capacitação de toda equipe de saúde envolvida no cotidiano de saúde mental e psiquiatria. Para isso as diretrizes curriculares de graduação em enfermagem explicitam que os alunos estudem os itens sobre a reforma sanitária brasileira com ênfase ao SUS e alguns princípios e diretrizes dos mesmos onde se inserem os cuidados a atenção à saúde mental da população em geral (FERNANDES et al, 2009).
Observa-se que os novos conceitos sobre a temática fizeram com que as instituições educacionais reconstruíssem seus projetos pedagógicos para que assim as competências e habilidades dos novos profissionais possam acompanhar as mudanças. Esses saberes corroboram para uma resposta e defesa do SUS, valorização do aluno enfermeiro e uma visão holística para o portador de sofrimento psíquico (FERNANDES et al, 2009).
Porém, por décadas o enfermeiro que atua em saúde mental e psiquiatria têm assumido papéis que poderiam ser realizados por outros profissionais, como administração, as próprias técnicas que podem ser realizadas por alguém da equipe de enfermagem ou até mesmo em alguns casos vigias do paciente interno, para não fugirem. Ou seja, o enfermeiro vem se comportando como um transmissor de ordens e esquecendo seu papel fundamental como PSICOTERAPEUTA, GESTOR E ENFERMEIRO (FILIZOLA, 1997).
Segundo Alves e Oliveira, 2010, a clínica em enfermagem deve se estruturar em elementos construtivos que são compostos por:
EMPATIA: envolve a sensibilidade para com os sentimentos atuais do paciente bem como
tentar ajuda-lo a verbalizar, de forma que ele se sinta á vontade, sem interferir ou induzi-lo a
uma resposta.
INTUIÇÃO: em sua origem é o ato de contemplação, sendo retratada como um conjunto de conhecimentos próprio, adquirido por múltiplas experiências que pertençam ao universo particular de cada indivíduo, ideias subjetivas.
TEMPO: para a enfermagem como um todo é sinônimo de resultados e na psiquiatria não seria diferente. O tempo não é voltado para a enfermagem ou para a (o) enfermeira (o), mas para o tempo em que o paciente precisa, seja para conversar, confiar ou até mesmo para contemplar.
CUIDADOS PÓS-DEMANDA: parte do princípio do autocuidado e autonomia, respeitando a singularidade de cada indivíduo e suas necessidades do momento.
ESCUTA QUALIFICADA: momento em que a (o) enfermeira (o) passa a escutar o doente com atenção sem questionar se é uma história é verídica ou não, é apenas o escutar, para que após, o diagnóstico de enfermagem não apresente nenhum tipo de intervenção pessoal.
PRONTIDÃO PARA CUIDAR: é se fazer presente ao paciente para que ele sinta que pode confiar no profissional que ali está.
ESPERANÇAR: é a característica que todo o profissional de saúde em psiquiatria deve possuir, ter esperança em seus clientes, na capacidade de autocuidado e principalmente esperançar que um dia ele faça planos para o futuro.
Observa-se que os itens citados é o que categoriza o enfermeiro, seja ele generalista ou da área de saúde mental, cabendo aqui ressaltar que a enfermagem é a maior categoria trabalhista e merece maior valorização, bem como maior conscientização dos próprios profissionais e instituições de ensino, já que apesar do modelo assistencial ter passado por mudanças, as práticas destes profissionais são por vezes anuladas ou diminuídas em instituições de saúde psíquica (ESPERIDIÃO et al, 2013).
Ademais, sabe-se que apesar das grandes lutas já enfrentadas de cunho reformista, a psiquiatria ainda tem grandes trajetórias a percorrer, esta que pode ser facilmente vencida se estivermos todos empenhados em ver seres humanos como tais, sem correntes, sejam físicas ou mentais.
Tenório (2002) em sua dissertação cita uma passagem sobre uma conversa de Philippe Pinel, este trecho é um relato de seu filho, Scipion Pinel. Observa-se o quão atual é sua fala, os paradigmas que ainda não foram quebrados, a clínica que por vezes vence e o tratamento farmacêutico que em algumas cabeças ainda se sobrepõe:
“[…] Reza a lenda que, em 1793, Couthon (uma das três maiores autoridades da revolução francesa, ao lado de Robespierre e Saint-Just) teria inspecionado pessoalmente o hospital de Bicêtre, recém-assumido por Pinel. Após os primeiros contatos com os loucos, Couthon teria dado por encerrada a inspeção, dizendo ao responsável: “Ah!, cidadão, você também é louco de querer desacorrentar tais animais? … Faça o que quiser. Eu os abandono a você. Mas temo que você seja vítima de sua própria presunção.” Ao que Pinel teria respondido: “Tenho a convicção de que estes alienados só são tão intratáveis porque os privamos de ar e liberdade, e eu ouso esperar muito de meios completamente diferentes.” O gesto pineliano de desacorrentar os loucos para implementar “meios completamente diferentes”, mito de origem da psiquiatria, é o signo de que, desde a sua fundação, a ciência psiquiátrica nasceu como reforma.” (FOUCAULT, 1993 apud TENÓRIO, 2002 , p. 26).
Assim como Pinel, todos, sejam da área ou não, podem pensar e agir de forma humanista, pois os desequilíbrios psicossociais podem chegar a qualquer um. Existindo uma linha tênue entre felicidade e loucura… Vamos pensar em como sermos seres humanos melhores? Tentar fechar os olhos e imaginar como pode ser viver a situação do outro?
Não é apenas sobre psiquiatria, é sobre quem estamos nos tornando. A busca da enfermagem não deve ser pra se tornar melhor que outras profissões/profissionais, mas conquistar seu espaço e valorizar a profissão.
REFERÊNCIAS
ALVES, M.; OLIVEIRA, R. M. P.; Enfermagem psiquiátrica: discursando o ideal e praticando o real. Esc. Anna Nery vol.14, Rio de Janeiro Jan./Mar. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452010000100010
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BORGES, Francisca Maria Oliveira. O Nascer da Reforma Psiquiátrica. Psicologado, [S.l.]. (2013). Disponível em https://psicologado.com.br/psicopatologia/psiquiatria/o-nascer-da- reforma-psiquiatrica. Acesso em 4 Jun 2020.
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