A trajetória das mulheres na cirurgia odontológica até 2020

Um pouco de história.

Durante séculos se acirrou culturalmente que a graduação era uma condição estritamente masculina. Por exemplo: você sabe qual foi a primeira mulher cirurgiã dentista? Pois bem, não foi há muito tempo. Em 1865, Lucy Beaman, após enfrentar diversas recusas por ser mulher, finalmente foi admitida na faculdade. Já no Brasil, demorou um pouco mais, foi apenas em 1906, 40 anos após Lucy, que Isabella Von Sydow, foi a única mulher em uma turma, na faculdade de medicina do Rio de Janeiro. Obviamente, as mulheres dessa época superaram muitos desafios para seguir a carreira odontológica, como preconceitos, pressões e hostilidades, não apenas da sociedade, mas também dos superiores e dos colegas de trabalho do sexo masculino.

Na década de 1960, quando foram criados os conselhos de odontologia, os homens representavam 90% do mercado odontológico. Hoje, o cenário melhorou consideravelmente, uma vez que, de acordo com o Conselho Federal de Odontologia (CFO), as cirurgiãs dentistas são 71,82% do total de profissionais da odontologia. Essa inversão começou na década de 80, com muito esforço das mulheres para superar os desafios de um machismo estrutural durante os anos.

Em 2007 foi aplicado um questionário para 50 cirurgiãs buco-maxilo-faciais, em um estudo, e os dados do artigo demonstraram que:

  • 96% afirmaram não ter enfrentado obstáculos para entrar na faculdade e concluir a graduação por serem mulheres.
  • 66% responderam que sentiram preconceito por parte dos homens ao escolher cirurgia e traumatologia buco maxilo facial como especialidade.

Há quem diga que não existe mais preconceito de gênero no âmbito profissional, que as mulheres e homens possuem as mesmas oportunidades e direitos, mas estamos aqui para refletir mais um pouco. Por que será que ainda vemos majoritariamente homens ocupando as diretorias dos departamentos, as propagandas de televisão e os cargos de maior prestígio? A realidade nua e crua é que o mercado de trabalho e a sociedade em geral ainda são muito preconceituosas e machistas em diversas profissões e na área de Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial (CTBMF), que é o foco do nosso texto hoje, isso é ainda muito prevalente.

Testemunho atual:
Todo esse texto se justifica por testemunho próprio, já que vivenciei momentos hostis e preconceituosos nas clínicas da faculdade, ainda sendo discente, simplesmente pelo fato de ser mulher.

Porém, trago o testemunho de uma pessoa que possui muito mais experiência e é muito reconhecida e admirada: a única mulher entre 10 professores de cirurgia que tenho na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Fernanda Brasil Boos Lima, doutora em CTBMF pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) é minha maior inspiração no ambiente acadêmico. Na verdade, a representação dessa mulher é muito importante e chegou para destruir preconceitos, começando por ser a primeira professora de cirurgia de uma faculdade tradicional como a UFMG.

A sua presença motiva as alunas que, como eu, sonham em seguir na área. Mas ela vai além, lutando dentro da faculdade pela valorização da mulher e fazendo questão de lembrar sempre a todos que não há nada que impeça nenhuma de nós de chegar no mesmo lugar que um homem.

“Acredito que seja essencial fazer um bom trabalho, mostrar os nossos resultados! A valorização e o reconhecimento são consequência disso.”

Em seus relatos, Fernanda Lima afirma ser uma pessoa resolutiva e que ter filhos e família nunca se apresentou como uma situação limitante para exercer sua profissão. Ela levantou que o essencial é ter organização e planejamento e que para quem tem filhos e trabalha com horários irregulares o segredo é procurar uma base de confiança e apoio em casa, pois a organização é fundamental. Hoje, Fernanda é mãe, esposa, cirurgiã, pesquisadora e professora.

“ A gente não precisa se limitar a uma função. A gente pode ser tudo!”

Sobre o preconceito em relação às mulheres na cirurgia, ela relata que por mais que muitas pessoas insistam em dizer que não acontece mais, esse tipo de comportamento está presente sim, intrinsecamente ligado às situações naturais e cotidianas do seu dia a dia profissional. Entretanto, ela nunca encarou esses momentos hostis como um impedimento
para o seu sucesso, mas sim com muita classe, mostrando sua capacidade e se valorizando como cirurgiã.

E afirma, que por mais que exista um preconceito em todas as esferas (na graduação, no mestrado e na residência) no mercado de trabalho isso é muito mais forte e é muito mais demonstrado, uma vez que a concorrência passa a existir e, ainda hoje, é muito difícil para alguns homens entenderem que independente de gênero, as pessoas, podem ter as
mesmas capacidades e direitos.

“Foi-se o tempo da cirurgia hostil. Hoje a cirurgia é uma disciplina inclusiva e no que depender de mim vou trabalhar por isso, para valorizar e acreditar em todas as pessoas que estejam dispostas a trabalhar e receber a valorização pelo seu mérito.”

Por fim…
Se você é uma mulher, que assim como eu, deseja se formar em CTBMF, entenda que o objetivo desse texto não é te desestimular, mas te incentivar! Se já viemos superando todas essas barreiras culturais desde 1861 e hoje temos nossos direitos e certa representatividade no mercado, podemos ir bem mais longe, mostrando o nosso trabalho, competência e todo o nosso valor. E para finalizar com uma notícia boa, que mudou meu ano de 2020: pela primeira vez, a residência da UFMG, no Hospital das Clínicas, em CTBMF possui todas as seis residentes mulheres.

Militar contra a discriminação de gênero, mesmo que camuflada em pequenos atos do dia a dia, deve ser um ato constante de cada uma de nós e assim, juntas, vamos muito além! Encerro com uma frase da professora Fernanda Lima, que é o que eu espero com esse texto.

“Acredito que se você inspirar uma pessoa com o seu texto já valeu a pena, pois essa pessoa poderá inspirar mais uma e assim, repetidas vezes, criaremos uma rede, que se apoia e acredita na valorização do nosso papel na Cirurgia Odontológica..”

Referências:

1) JUAREZ, Nália et al. Mulheres na cirurgia buco-maxilo-facial no Brasil: motivos de escolha, dificuldades encontradas e características do exercício da especialidades.. Mulheres na cirurgia buco-maxilo-facial no Brasil , Porto Alegre, março 2007. Disponível em: file:///C:/Users/Jeniffer/Downloads/RGO- 2007-53.pdf. Acesso em: 26 maio 2020.

2) CALAZANS, Michelle. Dia Internacional da Mulher: CFO ressalta importância histórica de luta das mulheres na odontologia. In: CFO ressalta importância histórica de luta das mulheres na odontologia. [S. l.], 2020. Disponível em: http://website.cfo.org.br/dia-internacional-da-mulher-cfo-ressalta- importancia-historica-de-luta-das-mulheres-na-odontologia/. Acesso em: 25 maio 2020.