Com o envelhecimento cada vez maior da população brasileira, com consequente alteração do perfil clínico dos pacientes, é cada vez mais comum ouvir falar das osteonecroses. Longe de serem assunto somente dos cirurgiões, é de grande relevância que o cirurgião dentista (CD), independente da sua área de atuação, saiba identificar, tratar ou encaminhar os pacientes portadores dessas patologias.
Se é a primeira vez que você ouve falar sobre o tema, é interessante entender que a osteonecrose é consequência de um grupo de doenças bastante variado, que pode abranger desde as infecções até as sequelas de tratamento para o câncer. O objetivo deste artigo é elucidar alguns pontos sobre a osteonecrose associada a medicamentos, tecnicamente conhecida como MRONJ (Medical Related Osteo Necrosis of the Jaws).
As MRONJ até 2014 eram conhecidas como BRONJ, pois eram atribuídas somente ao uso de bifosfonatos. Percebeu-se através de estudos randomizados que existia um crescente número de casos de osteonecrose em maxila e mandíbula associados a terapias antirreabsortivas e antiangiogênicas. Sendo assim, com a ampliação do leque de drogas causadoras desta enfermidade, em 2014 a AAOMS (American Association of Oral and Maxilofacial Surgeons) achou prudente atualizar a nomenclatura.
Porque as MRONJ são tão importantes?
A necrose dos maxilares possui a capacidade de gerar um bloco ósseo necrótico nos maxilares, conhecido como sequestro ósseo. Este osso desvitalizado leva a uma resposta inflamatória do organismo, e uma vez exposta ao meio oral, torna-se contaminada. Esta infecção gera um quadro de dor e desconforto que propicia a expansão da zona necrótica, resultando em um defeito ósseo que muitas vezes pode levar a uma deformidade estético-funcional de difícil resolução, além de afetar severamente o convívio social e a saúde mental do paciente.
Devido ao potencial de morbidade da osteonecrose induzida por medicamentos, o profissional de Odontologia é uma peça chave para que se obtenha o diagnóstico diferencial de MRONJ em pacientes com histórico de exposição aos agentes antirreabsortivos e antiangiogênicos. O CD é apto a formular estratégias para a prevenção da doença, e ao manejo adequado destes pacientes.
Como a mudança de nomenclatura sugere, a MRONJ é consequência da ação de duas classes de medicamentos: as medicações antirreabsortivas e as antiangiogênicas. As medicações antirreabsortivas didaticamente podem ser divididas em Bifosfonatos endovenosos (BE), Bifosfonatos Orais (BO) e Inibidores da enzima Rank-L (IRL).
Os BE são largamente utilizados para o manejo de condições adversas associadas ao câncer, como a hipercalcemia da malignidade, as metástases ósseas, as lesões líticas (que promovem osteólise), e propiciam uma melhora significativa na qualidade de vida dos pacientes devido a redução do risco de fraturas patológicas. Eles também são utilizados para o manejo da osteoporose, em sua maioria o zolendronato e o ibandronato.
Já os BO são classicamente utilizados para o tratamento da osteoporose e da osteopenia, além do controle da doença de Paget e da osteogênese imperfeita. A osteoporose é muito comum na população, principalmente em mulheres a partir da quinta década de vida. Nos últimos vinte anos o uso do alendronato foi largamente difundido como tratamento profilático para a osteoporose em idosas.
Já a osteogênese imperfeita é uma doença mais rara, associada a um defeito estrutural na matriz óssea, levando a produção de ossos extremamente frágeis, como observado pelo personagem de Samuel L. Jackson no filme Vidro.
Estas drogas possuem a capacidade reduzir a perda de estrutura mineral através da inibição da função e diferenciação dos osteoclastos, e aumento da apoptose. Isto leva a uma diminuição tanto da reabsorção óssea quanto da diferenciação dos osteoclastos. O porém é que este tratamento possibilita a formação de zonas hipermineralizadas na matriz óssea, com prejuízo do sistema harvesiano, levando a um quadro de marfinização ou mumificação óssea. Este osso não possui a capacidade de recuperação após qualquer tipo de trauma, podendo levar a uma resposta inflamatória devastadora na região.
As IRL, principalmente representadas pelo denosumab, inibem a ação osteoclástica, e consequentemente a reabsorção óssea. A principal consequência deste efeito é a redução da plasticidade óssea, sua capacidade de remodelação. Quando administrado por via subcutânea por 6 meses, reduz o risco de fraturas vertebrais, não vertebrais e em quadril de pacientes com osteoporose. Por ser uma droga que não se liga ao osso, os efeitos do medicamento cessam após seis meses, tornando-a uma droga relativamente segura.
Com um mecanismo de ação diferente das drogas antirreabsortivas, as medicações antiangiogênicas interferem na formação de novos vasos sanguíneos, ao se ligarem a várias moléculas que desencadeiam a cascata de sinalização para a angiogênese. Estas drogas são eficazes no tratamento de tumores gastrointestinais, renais e neuroendócrinos, por reduzirem o aporte sanguíneo para a lesão.
Em contrapartida, nos ossos mais corticalizados, onde o aporte sanguíneo é um pouco mais restrito, podem levar a redução da vascularização no trauma ósseo, prejudicando a nutrição do tecido, tendo como consequência a necrose da região avascular.
Os exatos mecanismos que levam a instalação da MRONJ ainda não foram completamente elucidados. As principais teorias apontam para os efeitos adversos das medicações, além de um forte componente inflamatório e infeccioso. Estudos mostram a presença de bactérias do gênero actinomyces em lesões ósseas necróticas. Outros estudos identificaram bactérias em combinação com fungos e vírus, o que pode exigir tratamentos mais sofisticados para combater o biofilme.
Onde entra a atuação do cirurgião dentista nos casos onde há suspeita ou o risco de desenvolvimento da MRONJ?
É muito importante que o profissional saiba identificar os fatores de risco para o desenvolvimento da doença:
• O risco para o desenvolvimento de osteonecrose em pacientes que utilizaram medicações antirreabsortivas é cerca de 50 a 100 vezes maior do que os pacientes submetidos a placebo;
• Pacientes que foram submetidos a terapias antirreabsortivas por conta de cânceres apresentam um risco 100 vezes maior de osteonecrose que pacientes com osteoporose;
• O principal fator de risco para osteonecrose é a cirurgia dentoalveolar;
• 0,5% dos pacientes usuários de antirreabsortivos orais desenvolvem osteonecrose, enquanto que 1,6 – 14,8% dos pacientes que recebem a medicação endovenosa desenvolvem a doença (o que indica uma relação entre a concentração plasmática e um aumento no risco de necrose dos maxilares).
Uma vez que a grande maioria destes pacientes necessitam dessas drogas para combater o câncer ou ter condições de saúde que possibilitem alguma qualidade de vida, o principal foco do profissional de odontologia está no manejo destes casos. A AAOMS apoia uma abordagem multidisciplinar para o tratamento destes pacientes.
O aumento da consciência (escuta ativa e acompanhamento psicológico), atendimento odontológico preventivo e o reconhecimento precoce dos sinais e sintomas da MRONJ resultam em uma detecção mais precoce da doença, possibilitando uma melhor reabilitação dos casos.
É importante para todos os pacientes que serão submetidos a tratamento com drogas antirreabsortivas e antiangiogênicas o início precoce do tratamento odontológico, visando reduzir ao máximo a necessidade de intervenções que possam gerar algum tipo de trauma tecidual.
Quais são os pontos cardeais na avaliação clínica e radiográfica destes paciente?
• Motivação do paciente
• A educação do paciente sobre o cuidado dental, aplicação de flúor e bochecho com clorexidina
• Avaliação da mobilidade dentária e doença periodontal
• Avaliar a presença de fragmentos de raízes , cáries , patologia periapical ou edentulismo(risco de fratura patológica em mandibulas atrésicas)
As decisões devem ser tomadas em conjunto (médico e dentista), além de outros especialistas envolvidos no cuidado do paciente. Os protocolos de prevenção da osteonecrose são diretrizes que são familiares para a maioria dos oncologistas e clínicos gerais . É recomendado que o início da terapia anti-reabsortiva deva ser adiado até que uma boa saúde oral seja estabelecida. Dentes não restauráveis e aqueles com um mau prognóstico devem ser extraídos. Qualquer cirurgia dentoalveolar eletiva necessária também deve ser concluída neste momento.
O objetivo do tratamento para os pacientes em risco de desenvolver ou que têm MRONJ
A preservação da qualidade de vida através de:
• Priorização e apoio de tratamento oncológico em pacientes que receberam medicação IV antirreabsortiva e terapia antiangiogênica
• Controle da dor óssea e redução da incidência de outras complicações esqueléticas
• Controle da infecção secundária
• Prevenção da extensão da lesão e desenvolvimento de novas áreas de necrose
A American Association of Oral and Maxillofacial Surgeons recomenda a suspensão dos bifosfonatos orais durante 3 meses antes e 3 meses após a cirurgia oral invasiva (exodontias, raspagens subgengivais com descolamento de periósteo, cirurgias periodontais em geral). O início precoce do atendimento não só diminui a incidência de osteonecrose, mas também acumula os benefícios de uma ótima saúde oral.
É muito importante também que os pacientes que vão iniciar tratamento com antirreabsortivos para osteoporose sejam orientados quanto aos potenciais riscos de MRONJ com a terapia antirreabsortiva, quando esta excede o limite de 4 anos, além da Importância de otimizar a saúde bucal ao longo deste período de tratamento.
Os pacientes assintomáticos com uso de bifosfonatos intravenosos ou drogas antiangiogênicas para o câncer devem manter uma boa higiêne oral, além de serem acompanhados com atenção, para a prevenção de doenças dentárias. Os procedimentos que envolvem a lesão óssea direta devem ser evitados.
Os pacientes assintomáticos, que receberam terapia antirreabsortiva para a osteoporose com duração inferior a 4 anos, parecem ter manifestações menos graves de necrose, e os dados apontam que a cirurgia dentoalveolar não parece ser contraindicada. Com uma boa técnica cirúrgica, e respeitando-se os limites teciduais, o risco fica em torno de 1%.
Já nos pacientes com MRONJ estabelecida, os objetivos do tratamento são eliminar a dor, controlar a infecção dos tecidos moles e duros, e minimizar a progressão ou a ocorrência de nova área de necrose óssea. Nestes pacientes, deve se evitar procedimentos cirúrgicos dentoalveolares eletivos, uma vez que estes sítios cirúrgicos podem resultar em áreas adicionais de osso necrosado.
Ainda nos pacientes com MRONJ estabelecida,as áreas de osso necrosado que são uma fonte constante de irritação dos tecidos moles (ou sequestro ósseo solto) devem ser removidas. Um estudo controle randomizado, analisando o uso de oxigenoterapia hiperbárica (OHB) como um complemento ao tratamento não-cirúrgico e cirúrgico de MRONJ, demonstrou melhoria na cicatrização de feridas, melhora nos escores de dor de longo prazo e elevação da qualidade de vida. No entanto, dado o tamanho reduzido da amostra, não houve diferença estatisticamente significativa entre o grupo controle e grupo tratado com OHB em relação a completa cobertura gengival ao final do estudo. Portanto, o uso da OHB como a única modalidade de tratamento para MRONJ ainda não é suportado.
A análise histológica completa é indicada para todas as amostras de ossos ressecados (especialmente para pacientes com história de doença maligna) já que o câncer metastático tem sido relatado nestes espécimes.
O avanço nas tecnologias médicas e o aumento da expectativa de vida, aliados a uma maior exposição aos agentes carcinogênicos , são um desafio constante ao profissional de saúde. Há a necessidade de atualização rotineira, de forma a poder proporcionar conforto, cura e segurança áqueles sob os seus cuidados. Seja no diagnóstico e tratamento das doenças, seja no auxilio no tratamento de neoplasias, o cirurgião dentista é peça chave para uma maior longevidade e melhor qualidade de vida dos seus pacientes.
Nos próximos anos, não haverá espaço para aqueles profissionais que não sabem trabalhar em uma abordagem multidisciplinar, ou que não se atualizam em relação aos protocolos mais recentes de tratamento, e que não vislumbram o seu paciente no contexto bio-psico-socio-ambiental. O desejo de se apropriar deste conhecimento fará toda a diferença na prestação de um atendimento digno, humanizado e de excelência.