Nos serviços de pronto atendimento é grande a demanda de pacientes com queixas sem uma base orgânica identificável. O fenômeno, universal, é conhecido como “somatização”, termo intrinsecamente correlacionado à psicossomática e utilizado com frequência no meio médico, psicológico e psiquiátrico.
Mas, afinal, o que é somatização? Na definição de Lipowiski (1984) trata-se de “tendência para experimentar e comunicar desconforto e sintomas que não podem ser explicados pelos achados patológicos, atribuí-los a doenças físicas e procurar ajuda médica para eles”.
Este artigo vai apresentar outras definições objetivas que cercam o conceito e algumas das principais comorbidades e patologias associadas à somatização. Abordaremos também os diagnósticos inválidos que confundem o fenômeno somático, erroneamente, como sendo “inexistência de problemas reais” ou mesmo “tentativa de chamar a atenção” por parte do paciente.
A DNV, AS TENSÕES E A SOMATIZAÇÃO
Muitas vezes o profissional de medicina sente-se incomodado em não conseguir um diagnóstico objetivo. Procura dispensar rapidamente o paciente que, na sua opinião, “não tem nada”, ou cujo problema “não está no corpo, mas na cabeça”. Nesses casos, é frequente o diagnóstico de “distonia neurovegetativa” (DNV), que, no jargão hospitalar, é frescura, histeria, o famoso piripaque.
A DNV é um conceito bem conhecido no meio hospitalar. Corresponde quase a uma senha com a qual enfermeiros, atendentes e médicos se comunicam para anunciar secretamente que o paciente é hipocondríaco e não requer atenção especial. Ou seja, desconsideram que o paciente pode estar vivendo uma somatização. A literatura é unânime em classificar o fenômeno da somatização como bastante comum. A palavra-chave deste conceito é “tensão”.
Em linhas gerais, quando há conflito mental, a tensão gerada pelas interações sociais e culturais do ser humano tem de se dirigir para algum lugar e tendem a eclodir na zona mais vulnerável de cada organismo. Neste sentido, somatização é a expressão física das emoções e pode ser entendida tanto como patologia quanto como fenômeno. A lágrima, por exemplo, é a somatização do estágio emocional da tristeza.
Patologias e emoções interagem sem hierarquia entre elas. Os estados afetivos / emocionais são parte integrante das alterações estruturais e funcionais dos órgãos humanos. Ou seja, afetos e desafetos interagem reciprocamente com o funcionamento dos órgãos. Conflitos mentais geram tensão a partir de processos emocionais que ocorrem simultaneamente às disfunções.
Em outras palavras, a emoção não é a causa direta da doença, como muitas vezes se diz no senso comum. Ela, porém, se torna patogênica na medida em que traz à tona conflitos inconscientes. Quando as emoções não encontram vias para se manifestar, cronificam as alterações fisiológicas das emoções.
A partir da interação com o mundo, nós acessamos e experimentamos tensões emocionais. As emoções não existem por si só. São traduções de expressões psicológicas. Ou seja, angústia, tristeza, medo e raiva são nomes que damos à experiência psicológica de uma tensão emocional.
Essa tensão pode agravar ou aliviar disfunções orgânicas dos sistemas respiratório, circulatório, muscular, nervoso, digestório, sensorial, endócrino, excretor, urinário, esquelético, reprodutor e imunológico.
Outras definições merecem destaque. Sob o ponto de vista psicodinâmico, Lázzaro e Ávila (2004:02) entendem a somatização, operada no nível do inconsciente, como:
- Processo de utilização do corpo com “propósitos psicológicos”;
- Deslocamento de emoções desagradáveis que o sujeito é incapaz de tolerar, levando a sintomas físicos;
- O uso do sintoma para comunicar, de forma simbólica, um conflito intrapsíquico;
- O alívio da culpa por meio do sofrimento, ou para obtenção de “vantagens pessoais”;
- Liberação de obrigações e responsabilidades;
- Obtenção de cuidados e atenção, uma relação pessoal mais intensa ou a simpatia de outras pessoas;
- Compensação econômica (entendida como a economia pulsional, conceito psicanalítico).
COMORBIDADES FREQUENTES
É importante lembrar que todo processo de somatização se dá no nível do inconsciente. Na prática, portanto, costuma passar despercebida no diagnóstico médico. O profissional da saúde deve ter em mente que a presença de somatizações não exclui o diagnóstico de outras doenças psiquiátricas. Depressão e ansiedade, por exemplo, estão entre os males mais frequentemente associados com somatização. Senão vejamos:
Pacientes com transtorno de somatização comumente têm depressão coexistente (até 60%), transtornos ansiosos, como transtorno do pânico ou o transtorno obsessivocompulsivo (até 50%), transtornos de personalidade (até 60%) ou transtorno por abuso de substâncias psicoativas (13).
Em uma amostra de 90.000 consultas ao clínico geral, 72% dos pacientes que receberam diagnósticos psiquiátricos tinham um ou mais sintomas físicos entre as queixas principais (14). Uma parte dos pacientes que se apresentavam ao médico clínico com queixas físicas vagas, quando encaminhados ao psiquiatra não atribuíam seus sintomas a doenças físicas. Esses pacientes foram considerados “facultativos”, e não “verdadeiros” somatizadores (Schurman: 1985)
ALGUNS EXEMPLOS CONCRETOS DE SOMATIZAÇÃO:
Figuram entre sintomas e síndromes comumente relatados por pacientes com somatização (Cf. Lázzaro e Ávila: 2004):
– Sintomas gastrointestinais: Vômitos, Dor abdominal, Náuseas, Distensão abdominal e excesso de gases, Diarréia, Intolerância alimentar;
– Sintomas dolorosos: Dor difusa (“sou inteiramente dolorido”), Dor nas extremidades, Dor nas costas, Dor articular, Dor durante, a micção, Cefaléia;
– Sintomas cardiorespiratórios: Falta de ar em repouso, Palpitações, Dor no peito, Tonturas;
– Sintomas pseudoneurológicos: Amnésia, Dificuldade para deglutir, Perda de voz, Surdez, Visão dupla ou borrada, Cegueira, Desmaios, Dificuldade de caminhar e urinar, Pseudocrises epilépticas, Fraqueza muscular;
– Sintomas dos órgãos reprodutivos: Sensações de queimação nos órgãos sexuais, Dispareunia, Menstruação dolorosa, Ciclos menstruais irregulares, Sangramento vaginal excessivo, Vômitos durante toda a gravidez;
– Síndromes: “Alergias alimentares” vagas, Precordialgia atípica, Síndrome da articulação temporomandibular (ATM), “Hipoglicemia”, Síndrome da fadiga crônica, Fibromialgia, “Deficiência vitamínica” vaga, Síndrome pré-menstrual, Múltipla hipersensibilidade química.
O ideal é que os profissionais de atendimento à saúde compreendam que a somatização não está no domínio racional do paciente. É, portanto, preciso investigar o mecanismo de processamento das emoções que a causaram. Isso possibilitaria tranquilizar o paciente, reconhecendo o sofrimento e as limitações do tratamento e ao mesmo tempo evitar a rejeição ao diagnóstico. Além disso, a prescrição de remédios pode ser benéfica, no entanto, será sempre apenas parte do tratamento quando se fala em somatização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entender o fenômeno da somatização é relevante em virtude da perene busca humana pela cura de seus males. Há, porém, carência do “pensar” e “fazer” integral, frente aos vários sintomas do adoecimento que surgem isolados ou interligados aos aspectos biológicos A Saúde no Modelo Biopsicossocial deve ser uma via de mão dupla entre a psicossomática (o emocional afeta o corpo) e a somatopsíquica (as manifestações orgânicas que interferem no funcionamento psíquico).
A humanização dos hospitais guarda relação direta com a somatização, na medida que a ignorância dos profissionais de saúde prejudica a maneira de atender o paciente que somatiza. Maneira, em geral, pouco “humanizada”. Portanto, a visão biopsicossocial integral do ser humano e a humanização do atendimento hospitalar devem estão no cerne da questão quando falamos de doenças somáticas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LAZZARO, Celina D.S.; ÁVILA, Lazslo A. Somatização na prática médica FAMERP – Depto. Epidemiol. Saúde Coletiva – DESC. 2004. Disponível em http://repositorio-racs.famerp.br/racs_ol/Vol-11-2/ac09%20-%20id%2036.pdf. Último acesso em 07 de junho de 2021.
LIPOWISKI, Z. J. (1984). What does the word ‘ psychosomatic’ really mean? A historical and semantic inquiry. Psychosomatic Medicine, 46 (2), 153-171.
SCHURMAN, R.A., Kramer, P.D., & Mitchell, J.B. (1985). The hidden mental health network. Treatment of mental illness by nonpsychiatrist physicians. Arch Gen Psychiatry, 42(1), 89-94.