Já dizia Hipócrates: Sedare Dolorem Opus Divinum Est, o alívio da dor é obra divina. Assim, a anestesia representa uma das melhores invenções e conquistas do ser humano, sendo parte fundamental da cirurgia. Porém, sua importância não se restringe ao centro cirúrgico, pois deve ser planejada prévia e individualmente, além de não acabar assim que a cirurgia termina.
A anestesiologia é uma especialidade médica dedicada ao estudo e pesquisa de anestésicos, de modo a proporcionar ausência de dor e sensações relacionadas, seja para permitir intervenções cirúrgicas, exames diagnósticos ou procedimentos ambulatoriais. Trata-se, portanto, de uma especialidade tão completa quanto complexa, pois exige do anestesista amplo conhecimento acerca de diferentes áreas da medicina veterinária, desde anatomia, fisiologia, farmacologia e medicina intensiva.
Independentemente de ser um procedimento eletivo ou de emergência, o anestesista precisa estar preparado, munido de conhecimentos que possibilitem detectar possíveis alterações prévias ao procedimento anestésico, estabilizar o paciente se necessário e manejar as complicações que porventura surjam!
A anestesia geral baseia-se fundamentalmente em quatro pilares que são a analgesia ou ausência de dor, a inconsciência ou narcose, o relaxamento muscular e a proteção neurovegetativa, que é a manutenção adequada das funções vitais. Sem esses quatro itens, não é anestesia. E não existe um único fármaco capaz de anestesiar de fato, por isso é fundamental a abordagem multimodal, ou seja, associação de fármacos que possibilitem uma anestesia adequada e segura para cada paciente.
Anestesiar é definitivamente muito mais que apenas aplicar uma injeção ou seguir um protocolo do tipo “receita de bolo”, pois consiste em avaliar individualmente cada paciente. Quem é o seu paciente? Qual intervenção será realizada? Quais fármacos estão disponíveis e quais impactos seu paciente consegue tolerar? Para responder essas questões e desempenhar sua função com a responsabilidade e competência necessárias, o trabalho do anestesista se inicia na avaliação pré-anestésica.
A avaliação pré-operatória objetiva verificar o estado clínico geral do paciente, de modo a determinar seus riscos anestésicos e cirúrgicos e elaborar a conduta terapêutica e estratégias de tratamento mais apropriadas a cada indivíduo. Dessa forma, uma anamnese detalhada com histórico do paciente e medicações em uso, exame físico e parâmetros basais, exames complementares essenciais como o hemograma, glicemia, perfil renal e hepático, além de exames específicos para cada situação, são fundamentais para o sucesso do procedimento cirúrgico.
Alterações previamente percebidas nos exames pré-anestésicos nem sempre impossibilitam o procedimento, apenas demandam maior atenção perianestésica. No entanto, mesmo pacientes hígidos e sem alterações prévias, podem ter seus índices paramétricos modificados durante o procedimento cirúrgico, justificando a necessidade da presença do médico veterinário anestesista durante o ato cirúrgico, com monitorização adequada.
O trauma causado pelo procedimento cirúrgico e as alterações promovidas pelos protocolos anestésicos, podem afetar principalmente o equilíbrio hemodinâmico e o sistema imunológico do paciente. Sabe-se que todos os pacientes submetidos a anestesia apresentam certo grau de hipoventilação e hipotermia, predispondo a alterações hemodinâmicas como hipotensão, e consequentes variações na pré e pós-carga, na perfusão tecidual e contratilidade do coração.
A amplitude das alterações imunológicas envolvendo a resposta inflamatória individual e a compreensão de que os efeitos da anestesia na hemodinâmica não acabam com a recuperação anestésica, tem motivado muitas pesquisas e permitido grandes avanços na anestesia veterinária.
Saber reconhecer e avaliar a dor, diferenciá-la de nocicepção e principalmente utilizar a analgesia preemptiva, são conhecimentos fundamentais ao anestesista e também exigem atualizações constantes.
Segundo os autores Gehrcke, Trein e Massone (2017), a abertura de cavidade apenas com “anestesia dissociativa”, é antiética, pois não proporciona analgesia, incorrendo geralmente em dor crônica e injúrias renais, com muitos prejuízos ao animal, à médio e longo prazo. Esse tipo de “anestesia” ainda é muito comum em campanhas ou mutirões de castração de cães e gatos à preços populares e em locais onde o médico veterinário exerce simultaneamente as funções de cirurgião e anestesista.
Técnicas como a neuroleptoanalgesia permitem associar um fármaco tranquilizante, um relaxante muscular e um analgésico opióide; resultando em inúmeros benefícios tais como redução na dose dos anestésicos gerais com menores efeitos colaterais, controle da dor, recuperação tranquila e maior segurança anestésica aos pacientes.
Enquanto a anestesia geral promove efeitos sistêmicos gerando total insensibilidade e inconsciência; a anestesia loco-regional tem alcance limitado, sendo dividida em anestesia local (pequenas áreas) e a regional cujos efeitos abrangem regiões um pouco maiores, como por exemplo anestesia peridural e bloqueios de plexos nervosos.
Nos bloqueios loco-regionais utilizam-se fármacos e técnicas que bloqueiam o estímulo de nocicepção, viabilizando planos anestésicos mais superficiais com conforto e segurança aos animais, pois diminuem o requerimento farmacológico e o risco anestésico geral. As técnicas de bloqueios locorregionais costumam ser de execução simples e grande aplicabilidade, sendo empregadas desde suturas de pele até excisões tumorais.
A escolha consciente de “protocolos” vai muito além de optar entre anestesia inalatória e anestesia total intravenosa, o foco deve ser na abordagem multimodal, que permite ao anestesista oferecer o melhor tratamento ao seu paciente, de modo individualizado, responsável e adequado às necessidades de cada um.
Atualmente, a disponibilidade de diferentes fármacos e combinações viabiliza a escolha de um procedimento anestésico específico para cada paciente, dependendo do seu grau de risco anestésico e suas individualidades. Cabe ao médico veterinário anestesista, sempre continuar estudando e atualizando seus conhecimentos, investindo em sua capacitação profissional.
Se você ainda procura aquele protocolo de anestesia ideal, anota esse aqui:
“A anestesia ideal é aquela que melhor se encaixa nas necessidades do paciente, no momento em que precisa ser administrada, resultando em maior alívio da dor, com menores efeitos colaterais, recuperação tranquila e, portanto, de maior segurança”.
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Referências
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