O que vem à sua mente quando falamos em equidade na promoção da saúde no Brasil? Hoje vamos abordar o tema a partir de uma perspectiva bem interessante e necessária, com foco na importância da preservação dos saberes negros na promoção da saúde da população negra. Se você é da área de Saúde, esse conteúdo é para você.
O nosso ponto de partida será a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) . A partir daí, vamos lançar uma lupa na importância da preservação dos saberes negros, principalmente dentro da Atenção Primária à Saúde .
Esse entendimento, aliás, amplia o contexto de cuidado global e do autocuidado. Ou seja, preserva a ideia de saúde preconizada pela Organização Mundial de Saúde, que extrapola o binômio saúde-doença.
Para essa nobre missão, conversamos com a Fisioterapeuta e Médica Veterinária Professora referência de Fisioterapia Pediátrica e Neonatal da Sanar Saúde, Luciane Marieta, e com o Fisioterapeuta, Sanitarista e Professor Universitário Tiago Coutinho!
Eles compartilharam com a gente uma série de conhecimentos úteis a todo e qualquer profissional de saúde que queira exercer sua profissão da melhor forma, promovendo um atendimento pautado pele equidade e pelo respeito.
Vem com a gente!
A promoção da saúde da população negra
A promoção da saúde, tema abordado a partir da 8º conferência nacional de saúde (CNS) e bastante discutido desde a criação da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), em 2006, tem o objetivo de “promover a equidade e a melhoria das condições e dos modos de viver, ampliando a potencialidade da saúde individual e coletiva e reduzindo vulnerabilidades e riscos à saúde decorrentes dos determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais”.
Aqui vamos destacar a palavra equidade. Para a ocorrência dela, segundo a PNPS, é necessário adotar práticas sociais e de saúde a fim de reduzir as desigualdades sistemáticas, injustas e evitáveis, respeitando as mais diversas diferenças, dentre elas as de classe social e étnico-raciais.
Isso, claro, promovendo a cultura da paz em comunidades, territórios e municípios; apoiando o desenvolvimento de espaços de produção social e de ambientes saudáveis, de modo a favorecer o desenvolvimento humano e bem-viver. Sempre, atentos aos saberes populares e tradicionais e às Práticas Integrativas e Complementares em Saúde ( PICS).
O papel da equipe na promoção à saúde da população negra
São várias as ações que podem auxiliar na preservação dos saberes negros por parte dos profissionais de saúde. A professora Luciane Marieta destaca que o primeiro é admitir que precisamos enfrentar as questões de saúde com equidade. Afinal, existem fatores ligados à etnia que precisam receber um tratamento diferenciado para garantir o direito à saúde e ao bem-estar a todos.
Ela frisa, ainda, que “a base do processo está no comprometimento dos profissionais de saúde em atender este grupo de maneira qualificada, com conhecimento prévio sobre suas demandas de saúde e com entendimento dos seus determinantes sociais.”
À equipe de Saúde, ela reforça que um passo importante é se debruçar sobre a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e relata sua experiência: “na prática vejo pouquíssimos profissionais debaterem a temática de modo a pensarem em uma abordagem mais acolhedora e de escuta qualificada nos seus serviços. No geral, os processos se dão com uma culpabilização do indivíduo negro em seus processos de adoecimento”.
Luciane, vale dizer, tem 14 anos de formada e atua há 10 com atendimentos de alta complexidade no serviço público de Salvador, na Bahia.
Thiago Coutinho também fala sobre o assunto e diz que “é imprescindível que os profissionais de saúde desenvolvam uma escuta qualificada que esteja pautada na valorização dos múltiplos saberes, onde o conhecimento acadêmico e técnico profissional entre em consonância com o saber daquela pessoa sobre determinada situação”.
Ele cita outro ponto fundamental: se forem fazer uma ação com foco na saúde da população negra, sabendo que a maior parte dessa população está em subempregos, numa carga excessiva de trabalho, é importante se atentar para o horário da iniciativa. Isso em dizer da questão geográfica e das possibilidades de deslocamento. Ou seja, é preciso pensar: esses serviços estão realmente acessíveis a quem se destina?
Saúde da população negra: como promover
Profissionais de saúde e equipes multiprofissionais podem colaborar das mais diversas formas para promover a saúde da população negra. Entre elas, estão:
- Produção do conhecimento científico nas mais diversas áreas. É preciso pensar, por exemplo, numa nutrição adequada – já que a fome atinge de maneira mais acentuada os negros, a insegurança alimentar também é maior entre eles e a alimentação tem uma relação direta com a saúde;
- Desenvolvimento de pesquisas com foco em doenças de maior prevalência entre os negros, tais como a anemia falciforme, hipertensão e diabetes. É preciso, também, aplicar os resultados;
- Estimular a sua própria capacitação para melhor atender a esse público dentro das suas demandas sociais, respeitando questões culturais e religiosas. Existem alguns informativos disponíveis nas secretarias de saúde e no Ministério da Saúde que abordam o tema e podem servir como fonte.
- Informar à população no âmbito geral, mas também seus pares, sobre os agravos à saúde mais comuns entre os negros e apresentar medidas mitigadoras e preventivas dentro do seu contexto social e econômico. Por exemplo: não dá para solicitar uma dieta rica em oleaginosas de difícil acesso econômico a um hipertenso que ganha menos de um salário-mínimo ao mês.
- Desmistificar questões simples associadas ao adoecimento do povo negro por serem vistos, sem o menor embasamento científico, como um povo mais resistente. Isso acontece quando dizem que o negro não é susceptível ao câncer de pele ou que sentem menos dor. Essas ações indevidas contribuem para um maior adoecimento, além de aumentar os índices de violência na Atenção Primária à Saúde da População Negra.
- Lembrar que por todo um contexto estrutural, econômico, social e político deste País, os negros e pardos representam maioria nas condições de vulnerabilidade e riscos à saúde, segundo o IBGE. Isso os coloca em maior grau de dificuldade no acesso ao sistema de saúde, mesmo esse sendo universal e gratuito.
Saberes negros na preservação da saúde
Falar de saberes negros é falar de conhecimentos com base, sobretudo, na oralidade, onde a figura do mais velho é também ocupada por um lugar de destaque.
“A construção de saberes é originada com base no mais velho, passando para o mais novo e assim vai sendo construído esse legado. Então, quando a gente fala da importância da preservação dos saberes negros na promoção da saúde, a gente está falando em uma escuta qualificada. Muitos dos saberes que giram em torno da educação popular em saúde bebem da fonte desses conhecimentos que atravessaram o Atlântico com os negros”, explica o professor Tiago Coutinho.
Entre os saberes negros que precisam ser preservados para contribuir com a saúde da população negra, estão:
- O entendimento de que o homem é parte integrada do meio ambiente e que por isso preservá-lo é regra. É preciso entender que esse saber contribui para manutenção dos nossos recursos naturais e, portanto, para a promoção da saúde;
- Entender que vivemos em comunidade e precisamos estar atentos às necessidades do outro, respeitando as suas diferenças (UBUNTU). Esse comportamento é visto com frequência nas comunidades quilombolas e promove a saúde a partir do entendimento de que as redes sociais e comunitárias são parte integrante dos determinantes sociais da saúde.
- Os saberes voltados ao uso da Botânica, Etnobotânica e Fitoterapia, de maneira não alopática e mais integrada ao ser físico, ao ambiente e ao campo energético promovem a saúde e o bem-estar, além de prevenirem doenças e, por vezes, a cura.
- Saberes relacionados às parteiras, cuidados com a gestante e diferentes conhecimentos pautados na oralidade.
Barreiras para a promoção à saúde da população negra
Entre os desafios que precisam ser enfrentados para a promoção à saúde da população negra está o fato de que essa população precisa de políticas diferenciadas para atender suas necessidades de saúde, conforme o princípio de equidade, uma vez que as pessoas negras estão mais expostas às questões de vulnerabilidade e riscos à saúde.
Luciane Marieta destaca que nosso modelo de educação tanto primária quanto secundarista e superior não dão visibilidade aos saberes do povo negro.
“Por muito tempo, eles foram vistos de maneira criminosa, como técnicas análogas a feitiçaria. Desta maneira, o contato com medicina de raiz africana, dentro das suas comunidades, é uma forma importante de resistência, pois por vezes, será a fonte mais rápida de acesso deste negro a um cuidado com a sua saúde, permitindo por vezes reduzir as taxas de mortalidade dentre desse grupo étnico-racial. Logo, respeitar a saberes negros como um legado que promove a saúde e previne doenças se faz necessário”, reiteira.
Também é um grande desafio o desinteresse e a falta de conhecimento sobre o tema por parte dos servidores da saúde. Esses fatores dificultam, principalmente, o desenvolvimento e a aplicabilidade das políticas de saúde voltadas ao povo negro. Isso, claro, reduz a qualidade de vida e aumenta a morbimortalidade dessa população.
A promoção da equidade na saúde
Em termos de políticas públicas, a promoção da saúde da população negra é dialogada por meio da Política nacional de Saúde integral da População negra (PnSiPn). No entanto, segundo Luciane Marieta, algumas ressalvas precisam ser feitas, uma vez poucas são as verbas destinadas e poucos são os municípios de que fato realizam o desenvolvimento dessa política.
A promoção da saúde tem forte atuação junto às religiões de matrizes africanas, dos girôs, das comunidades quilombolas com movimentos de resistência que buscam a preservação dos conhecimentos trazidos por rezadeiras, bezendeiras, raizeiras,parteiras, e curandeiros, por exemplo.
Para além dos vários benefícios, essas práticas trazem à população negra uma forma “alternativa” de promover saúde e prevenir doenças. Sendo assim, é necessário popularizar e valorizar esses conhecimentos entre os servidores da saúde em especial os que atuam com Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) e agentes comunitários que atuam próximos a essas lideranças.
Também é importante falar sobre a necessidade da ampliação dos temas voltados à saúde da população negra de forma transversal à educação permamante em saúde.
“O modo medicalocêntrico e hospitalocêntrico com o qual é gerenciado o nosso modelo de saúde dá pouco espaço para a discussão dos saberes populares. Pouco se fala da importância da implementação das “farmácias vivas” em espaços públicos”, conclui Luciane Marieta.
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