Lutos não autorizados do profissional de saúde: a supressão do sofrimento diante da morte e das perdas | Colunista

De acordo com Medeiros (2020, p. 01-02) no Brasil, bem como em outros países, milhares de pro­fissionais de saúde foram afastados das atividades profissionais por terem adquirido a infecção e muitos morreram em consequência da COVID-19.

A pandemia pelo SARS-CoV-2 teve início na cidade de Wuhan, região central da China em meados de 2019, relacionada a transmissão em um mercado de frutos do mar e de animais vivos. Rapidamente se disseminou para toda China, a Ásia e, em dois meses, atingiu todos os continentes.

No início de 2020 disseminou-se no Brasil e diante deste cenário surgiu a necessidade e urgência nos cuidados para evitar a proliferação, aumento de protocolos e mudanças em todas as esferas, especialmente na área da saúde.

Os dados das equipes de pro­fissionais de saúde na linha de frente de atendimento de casos de COVID-19 mostram exaustão física e mental, dificuldades na tomada de decisão e ansiedade pela dor de perder pacientes e colegas, além do risco de infecção e a possibilidade de transmitir para familiares (MEDEIROS, 2020, p. 01-02).

Meio a este caos coletivo, onde o sistema de saúde precisa de apoio, profissionais de saúde sente-se sobrecarregados, exaustos e no limite, nasce uma “homenagem” os denominando como “HERÓIS”.

O dicionário traz as seguintes definições para super-heróis:

1. Personagem fictício, dotado de poderes sobre-humanos, que defende o bem e combate incansavelmente o mal, ajuda os fracos e desprotegidos, procura livrar a sociedade dos criminosos.

2. indivíduo que se parece com um super-herói, por seu comportamento, coragem etc.

A intenção da homenagem foi nobre, mas é preciso atentarmos a esta visão que muitas vezes sobrecarrega. Levando em consideração que a discussão frente ao emocional desses profissionais já é antiga.

Quando tecemos títulos como estes, será que não estamos de alguma forma arrancando ou estancando alguns direitos, cabíveis a qualquer ser humano. Como por exemplo chorar, sentir dor, cansar, sofrer e até descansar? Quem cuida, daqueles que cuidam? Para onde vão suas dores, anseios, medos e aflições? E quando não há o que fazer, como eles reagem? Como vivenciam seus lutos e perdas?

Para Faria e Figuereido (2017, p. 53) a morte é um fenômeno presente, constante e desafiador na vida dos profissionais de saúde. A confrontação com a morte e com o luto, leva o profissional a pensar na sua própria fragilidade diante destes fenômenos. Podendo desencadear manifestações comportamentais e emocionais exigidos pela função e como se percebem em relação a tal realidade.

Fonte: Dreamstime

Profissionais de saúde diante da morte e das perdas:

Segundo Kovács (2021) a morte faz parte do desenvolvimento humano, desde a mais tenra idade acompanha o ser humano no seu ciclo vital, deixando marcas. Deste modo o contato com a finitude e a possibilidade de perdas se inicia no próprio nascimento, quando deixamos de habitar em lugar confortável e somos lançados ao mundo.

Qual a primeira coisa que passa na sua cabeça quando se fala sobre a morte? Se já esteve diante de situações em que outra pessoa estava em processo ativo de morte, o que você pensou?

Para Fischer (2007) A morte, o luto e as perdas, bem como a forma com que são vivenciados, dependem sempre de um contexto. Podem vir à tona inúmeras emoções, a curto, médio e longo prazo, que precisam de atenção e, em alguns casos, tratamento. Fato é, quando precisamos lidar, trabalhar em contexto que a morte, perdas se faz presente é inevitável não pensar na própria morte ou nas pessoas próximas a quem temos apego e vínculos significativos.

Os profissionais de saúde apresentam defesas e posturas diante do paciente, sendo essas facilitadoras ou prejudiciais ao tratamento. Os estilos profissionais trazem a reflexão histórica do homem e a morte (MAGALHÃES E MELO, 2015 p. 70).

A história do homem com a morte passou por diversas mudanças ao longo do tempo, Áries (1997) define algumas dessas atitudes:

MORTE DOMADA OU MORTE FAMILIAR surge em meados do século XVIII até o advento da sociedade industrial. Neste contexto o próprio moribundo se encarregava de preparar os rituais que lhe dariam o passaporte para última viagem. (apud SILVA, 2013).
Posteriormente a MORTE INVERTIDA OU INTERDITA Ariès (1997) apud Kovács (2011, p. 484) ao se referir à morte interdita, cita atributos de fracasso, erro médico. Esse tipo de morte constitui evento solitário, e a expressão do sofrimento deve ser minimizada, sem rituais. Kóvacs, continua e pontua sobre o silêncio que impera entre os profissionais de saúde tornando penosa as atividades com pacientes gravemente enfermos.

Conforme afirma Silva (2013) com o advento da sociedade moderna e das ciências médicas a morte saí oficialmente das casas para instituições hospitalares. Medicamentos e aparatos técnicos cada vez mais sofisticados, onde prolongar a vida começa a ser procedimento de ordem e a morte é tratada como sinônimo de fracasso e não como parte do ciclo vital.

Meio a essa interdição, como ficam os profissionais que lidam diariamente com adoecimento, perdas e com a morte?

Para Magalhães e Melo (2015 p. 70) os sentimentos e expectativas diante da morte são distintos para cada tipo de profissional da área de saúde, médicos, enfermeiros e psicólogos. A vida destes profissionais tem algo em comum: a morte é a companheira de trabalho. As complicações, resistências pessoais e sociais de si mesmo podem gerar angústias e resultar em stress ocupacional.

Caselatto (2015, p. 117) diz que diante de situações da morte ou eminência de morte de uma paciente, toda equipe de saúde é mobilizada por sentimentos de choque, negação, fracasso, tristeza, culpa, autorecriminação, vergonha e fantasias de naturezas e intensidades variadas. Esses sentimentos diante de uma perda de um paciente podem perdurar se não estiverem bem elaborados e podem reaparecer no contato com outros pacientes futuros, podendo gerar um estresse agudo, e até mesmo crises no âmbito profissional.

Benevides-Pereira (2003) apud Caselatto (2015, p. 118) chamam atenção para o prejuízo que esses estressores podem trazer para vida profissional, indo desde um grau moderado a níveis elevados, tendo como consequências a exaustão, o maior consumo de substâncias químicas (fumo, álcool e drogas), além da alta incidência de depressão, suicídio e síndrome de burnout.

Todo esse estresse e consequências não são apenas pela natureza do trabalho em si, mas também é atribuído pela necessidade constante de negar as emoções para a objetividade imprescindível. (CASELATTO, 2015, p. 119).

O processo de LUTO:

De acordo com Franco (2021) o processo de luto se inicia quando uma situação conhecida e significativa cessa, sendo está um depositório de significados para o indivíduo e acerca de si mesmo.

Para Fischer (2007, p. 17) o estudo do luto passa pelo aprofundamento do conceito de subjetividade, já que as representações da vida e da morte para o indivíduo têm a ver com a particularidade de suas vivências.

Denomina-se luto a reação a uma perda e representa uma reação natural a esta, seja ela real ou simbólica. Para que haja o processo de elaboração de uma perda, é imprescindível o aparecimento do luto.

Conforme discutido ao longo do texto o profissional de saúde constantemente se defronta com a morte e mesmo que não queira presencia processos de luto.

Deste modo, podemos pensar que o Luto tem suas particularidades, imaginem como uma impressão digital, tão único, subjetivo e singular. Falar de luto é falar sobre vínculos e laços que desataram.

“(…) Dá trabalho viver um luto. Ou vários deles. Ou alguns, especialmente. Não é uma questão quantitativa – trata-se de quem você se torna quando vive um luto(…)” (FRANCO, 2021, p. 10).

Com base em tudo o que vimos até aqui, pontuamos sobre a necessidade do luto ser vivenciado e validado. Voltemos ao nosso profissional “super-herói” que não pode expressar suas dores, perdas e até mesmo suas emoções, que muitas vezes nem as ver como algo que precise de atenção, seja pelas exigências impostas por ele mesmo ou pela sociedade.

LUTO NÃO RECONHECIDO (O luto do profissional de saúde)?

Fonte: Istockphto

Somos a arte dos encontros! Quantas pessoas passam por nós? Quantas pessoas nos afetam e permitem ser afetadas? Viver é permitir isso. O outro se torna espelho. Quantas vezes você já se viu no seu cliente ou paciente (como preferir) e pensou: “poderia ser eu neste lugar.”.

Ás vezes, lugar bom, permitiu reflexão e até agonia. Mas em muitos momentos, esse outro foi e é espelho. Lidar com a dor, fragilidade, anseios e medos desse cliente, pode nos colocar frente as nossas próprias dores e incômodos.

(…)quando alguém adoece e resolve procurar ajuda profissional, já se constela um momento muito singular. Duas pessoas que nunca estiveram juntas viveram intimidade suficiente para refletir sobre questões primordiais da existência humana, muitas vezes complexas e dolorosas(…). (CASELLATO, 2015, p. 155).

É quase impossível não se vincular em maior ou menor profundidade com alguém que passa por nossas vidas, confidencia suas dores, medos e fala de algo tão íntimo: seu eu. Que traz na bagagem seus enfrentamentos e todos os lutos simbólicos que um adoecimento pode trazer, seja uma doença que traga ameaças a vida ou não.

Casellato (2015, p. 157) bem diz sobre os profissionais de saúde: Somos muitos e pertencemos a diversas categorias profissionais. As feridas provenientes do exercício da nossa profissão estão associadas tanto à nossa condição humana quanto a nossa impotência diante das diversas situações que enfrentamos no nosso cotidiano.

Os encontros são muitos e os acontecimentos são diversos e diários, as perdas não dão trégua, são diárias. Onde colocar tantas vidas, histórias, emoções e sentimentos? Lidar com o outro e ter que lidar consigo mesmo.

Muitos dos estresses enfrentados pelos profissionais e a sobrecarga pelo próprio trabalho, podem surgir em nome de um luto que não é reconhecido e nem validado socialmente. Além disso, expressar e revelar seus sentimentos, pensamentos e emoções é visto de forma negativa. Até os próprios profissionais de saúde muitas vezes não reconhecem tais vivencias como luto e sim, parte do trabalho. (CASELLATO, 2015, p.119).

Mais afinal o que é o Luto não reconhecido: O Conceito desenvolvido por Keneth Doka (1989, 2002) é empregado quando a pessoa experiência uma perda que não pode ser admitida abertamente; o luto não pode ser expresso ou socialmente suportado. Pode ocorrer quando a sociedade inibe ou estabelece normas explicitas ou implícitas de quando, por quem, quem, onde e como se enlutar.  Diante disso é preciso EVITAR:

  1. Reforçar ou incrementar a vulnerabilidade do enlutado ou exacerbar o seu sofrimento.
  2. Interferir, inibir ou bloquear a expressão do luto. (CASELLATO, 2015, p. 15-18).

Portanto é necessário mais espaços para discussões sobre educação para morte e luto com os profissionais de saúde. Kovács (2021, p. 166)

Uma das maiores referências dos estudos sobre a educação para morte pontua: Na mentalidade da morte interdita, esta é vista como erro e fracasso por profissionais de saúde. Há uma ura de silêncio que rodeia a questão entre os profissionais, provocando sofrimento. Por outro lado, o prolongamento da vida e do tempo da doença promove maior tempo de convívio entre pacientes, familiares e equipe, com o aumento da carga de estresse e risco de colapso.

É fundamental a reflexão dos próprios profissionais frente a suas emoções e como o trabalho impactam suas questões pessoais e ainda mais promoções de cuidado para os cuidadores.

“O sofrimento humano só intolerável quando ninguém cuida. ” – Cicely Saunders

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Referências:

CASELLATO, Gabriela. O resgate da empatia: suporte psicológico ao luto não reconhecido. São Paulo: Summus, 2015. 264 p.

CASELLATO, Gabriela. Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e Lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade. 3° Ed. Niterói: PoloBooks, 2015. 160 p.

FARIA, Simony de Sousa; FIGUEREIDO, Jowilma de Sousa. Aspectos emocionais do luto e da morte em profissionais da equipe de saúde no contexto hospitalar. Psicologia Hospitalar, [s. l], v. 15, n. 1, p. 44-66, 2017.

FRANCO, Maria Helena Pereira. O luto no século 21: uma compreensão abrangente do fenômeno. 1° Ed. São Paulo: Editora Summus, 2021. 184 p.

FISCHER, Joyce Mara Kolinski [et al.]. Manual de tanatologia. Curitiba: Gráfica e Editora Unificado, 2007.

MAGALHÃES, Marília Vieira; MELO, Sara Cristina de Assunção. Morte e luto: o sofrimento do profissional da saúde. Psicologia e Saúde em Debate, [s.I], v. 1, n. 1, p. 65-77, abr. 2015.

Medeiros EA. A luta dos pro­fissionais de saúde no enfrentamento da COVID-19. Acta Paul Enferm. 2020; 33:e-EDT20200003. DOI:/http://dx.doi.org/10.37689/acta-ape/2020EDT0003

KOVÁCS, Maria Júlia. Instituições de saúde e a morte. Do interdito à comunicação. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 31, n. 03, p. 482-503, maio 2011.

KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys, 2021. SILVA, Lázaro Rodrigues. Interdição Da Morte E Morte Na Interdição. Psicologado, [S.I]. (2013). Disponível em https://psicologado.com.br/psicologia-geral/desenvolvimento-humano/interdicao-da-morte-e-morte-na-interdição.

Por Sanar

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