Relato de experiência: minha clínica tem cor? | Colunista

De vez em quando dentre os diálogos compartilhados pelas mídias sociais observo a consistência de debates no que tange a que (m) serve a Psicologia. Em que, percebe-se a urgência de considerar o discurso histórico como também político (ROMAGNOLI, 2006) que evoca a criticidade. Para Romagnoli (2006) destacar a necessidade disto é de tamanha importância, tendo em vista que “[…] fazer um trabalho com o social não é por si só uma prática ética e libertária […] (p.53).

Certa vez, ouvi de uma das minhas referências em Psicologia Social, que a tomada de consciência não é o suficiente para a transformação da realidade. Conforme Gloria (2021)2 muito psis em processo de formação se articulam em prol do dizer de um fazer “barato” a grupos minoritários seguindo por falas que se direcionam “todas as vidas importam” e por aí vai.

Mediante a isto, entende-se que em grande parte, esses dizeres permeiam-se no “eu sei que existe exclusão”, mas sem suporte fundamentado e autoavaliação inseridos nestes processos como, por exemplo à branquitude, uma postura acrítica das realidades sociais “acolhidas”. Que direciona-se, a constituição da Psicologia majoritariamente branca elitista que voltou-se a “[…] referenciais do hemisfério Norte para analisar o contexto psicossocial no hemisfério Sul, historicamente explorado […]” (Lane & Codo, 1986; Martín-Baró, 2009 apud MEIRELES; FELDMANN; CANTARES; NOGUEIRA; GUZZO, 2019, p.3-4).

Nesse sentido,

Essa reflexão é bastante pertinente quando consideramos que o Brasil é um país onde a questão raça/cor tem sido um importante indicador nos últimos 10 anos na configuração da violência. De acordo com o Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2018, p. 4), “a taxa de homicídios de indivíduos não negros diminuiu 6,8%, ao passo que a taxa de vitimização da população negra aumentou 23,1% […] que 71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas” (MEIRELES et al, 2019, p.4).

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Assim, quando é chegado no espaço terapêutico pelo qual se atua, preciso entender que o corpo que ali adentra perpassa micro e macro violências estruturais racializadas. Que também não direciona-se somente a população negra, mas indígena, com deficiência, LGBTQIA+ etc.

Lembro-me em determinado momento de minhas experiências em que direcionei a um olhar identitário para compreensão da melancolia colonial que se estende até hoje a uma mulher negra. Em espaço terapêutico propus que escolhesse algum personagem de desenho animado que a representasse. Não coincidemente ouvi “Irmão do Jorel” e, imediatamente, lembrei-me ao responder que era um dos meus desenhos favoritos e que inclusive em grande parte me via também como tal.

Logo, foi quando me toquei que Freud tinha suas razões quando apontou sobre as transferências. Mas afinal, existe neutralidade?. De modo resumido, o personagem é um garoto branco,

[…] de uma excêntrica família de acumuladores presa nos anos 80 e com a ajuda de sua melhor amiga, ele enfrenta os primeiros obstáculos da vida […] Sem diferenciar fantasia e realidade, ele sempre descobre uma maneira absurda de sair da sombra de seu irmão celebridade, mas seu verdadeiro nome é sempre um mistério para todos (CARTOONNETWORK[1] apud SANTOS, 2017, p.30).

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Dado este, que me levou a refletir sobre a “invisibilidade” que permeia a branquitude em não se reconhecer como racializada e o pacto narcísico agregado a hipersexualização do corpo negro passado nos programas televisivos, en especial neste. Tendo em vista, que Jorel é um jovem negro. E o que isso tem relação com a não neutralidade? Neuza Santos Souza em “Tornar-se Negro” (1983) ressalta que, “uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo.

Posto isto, um “discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade” (SOUZA, 1983, p.17). Tendo em vista que

[…] A ideologia racial do negro, por ser um lado fundada numa relação de inferioridade em face do branco, que detém presumivelmente o poder, exprime uma consciência de submissão. Nela o negro se imagina em especial, a partir dos termos em que é concebido pelo branco. Nesse sentindo a alienação do negro é mais acentuada, pois que ele se vê a partir das abstrações falsas engendradas na mente do branco (IANNI, 1987,p.323).

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Percebendo o quanto o processo de autoavaliação e descolonização é urgente, no que tange a instrumentalidade. Ou seja, quando estou no ambiente terapeutico preciso considerar tanto que sou uma mulher negra, bissexual, deficiente dos membros superiores, nordestina quanto a quem chega a mim em suas posicionalidades, prismas sociais, lembrando que a terapia não resolve/cura a desigualdade, entendendo as implicações do racismo estrutural que dialoga com quadro economico sócio histórico brasileiro.

Portanto, encerro esta reflexão em considerações não finais no sentido de expressar que esta pergunta deve nos nortear em todo processo terapêutico. A fim de nos fazer lembrar que a Psicologia só faz sentido quando considera estes apontamentos em vista da denúncia de um elitismo e assistencialismo histórico sem transmutos sociais comprometidos e críticos. Isto é, mercantilização e promoção de um serviço acrítico.

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REFERÊNCIAS:

IANNI, O. Raça e classes sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Disponível em: https://bit.ly/3nUDd80. Acesso em: 19 mai. 2020.

MEIRELES,  Jacqueline; FELDMANN, Mariana II; Cantares, Tamiris da Silva; Nogueira, Simone Gibran; Guzzo, Raquel Souza Lobo. Psicólogas brancas e relações étnico-raciais: em busca de formação crítica sobre a branquitude. Pesqui. prát. psicossociais,  São João del-Rei ,  v. 14, 2019 .   Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082019000300009&lng=pt&nrm=iso. Acesso em:  07  dez  2021.

ROMAGNOLI, Roberta C.Algumas reflexões acerca da clínica social. Revista do Departamento de Psicologia. UFF [online]. 2006, v. 18, n. 2. Disponível em:https://doi.org/10.1590/S0104-80232006000200004. Acesso em:  07  dez  2021.

SANTOS, Beatriz Lima. “IRMÃO DO JOREL” Questões sobre a Representação Negra no Audiovisual Infanto-juvenil Brasileiro. 2017. Disponível em:http://www.rascunho.uff.br/ojs/index.php/rascunho/article/view/178/137. Acesso em:  07  dez  2021.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro: As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

Por Sanar

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