Geralmente, os primeiros sinais de transtornos alimentares são vistos na infância e adolescência. Os que ocorrem na infância, seriam os do primeiro grupo, a alteração é vista na relação da criança com a alimentação, embora interfira no desenvolvimento infantil, não está ligado às preocupações com o peso ou forma corporal.
Ainda sobre o primeiro grupo, temos o transtorno de pica e o transtorno de ruminação. Já no segundo grupo, podemos inferir que, são os transtornos alimentares propriamente conhecidos, sendo eles a anorexia e a bulimia nervosa que, descrita como compulsão alimentar nervosa, podem ser periódicas.
Desde o século XVI, a discussão sobre a imagem corporal foi entrando em ascensão, um cirurgião percebeu a existência de um membro fantasma (membro amputado, porém, indivíduo ainda sente como se estivesse presente) comprovando que, mesmo diante de uma situação de sensibilidade, a imagem que criamos de nós mesmos permanece (CONTI e FRUTUOSO, 2005).
Embora, sabemos que são possíveis mudanças na imagem que criamos sobre nós, através de tratamentos psicológicos ou sob condições especiais. Weir Mitchell citado por (CONTI e FRUTUOSO, 2005).
Muitos estudos surgiram sobre a imagem corporal, sob a égide neurológica, psicológica e fisiológica, se faz pertinente dizer que, a imagem corporal é o modelo que foi construído em nossa mente no qual engloba o tamanho e a forma, entrelaçados aos sentimentos relacionados a estas características singulares.
A influência da mídia contribui consistentemente na construção da imagem corporal, portanto, é uma construção que não se dá, sem a influência de fatores emocionais, crenças sociais e ideais apontados pelo outro, muitas vezes de forma imperativa, porém, implícita.
Há uma exigência cultural por um padrão físico, muito distante do que se considera saudável, um padrão irreal, muitas mulheres sentem uma preocupação excessiva com a forma, bombardeadas noite e dia por uma mídia televisiva que ressalta um corpo muito magro como se fosse o ideal de beleza e a magreza toma “corpo” e transforma-se em um padrão destrutivo e irrealista.
Não podemos ignorar que, o cinema, a moda, spas, alimentos diet, práticas alimentares radicais e não saudáveis, as academias, são indústrias que reforçam tal discurso como se, sucesso, beleza e autoestima está diretamente ligado ao corpo magro e “sarado”, um corpo bem definido.
Nos últimos tempos, surgiram diversas dietas da moda, que cada vez mais prometem uma diminuição do peso corporal e saciedade a longo prazo, os alimentos processados estão sendo criticados e a palavra “orgânico” está se popularizando nas mídias e redes sociais (CHOPRA, 2014), em contraste com as grandes indústrias alimentícias e suas facilidades para aquisição de alimentos com calorias vazias, porém, esteticamente atraentes.
Não é de se admirar que, as mídias e redes sociais na era da imagem corporal e a facilidade pela promoção visual, difundem a ideia de que, ser amado e aceito só é possível, se for esbelto e com contornos bem delineados.
É possível verificar na clínica de Psicologia que a ideia de se fazer dieta e a insatisfação com o corpo, tem se tornado uma demanda presente e marcante, muito mais visível na população feminina, e quanto a isso, podemos apontar que a nossa cultura tem uma grande parcela de responsabilidade.
Na literatura, há um aumento das pesquisas sobre os transtornos alimentares, embora seja um assunto complexo e de difícil entendimento, pois é um transtorno ligado ao psiquismo e a história de vida de um indivíduo.
O Diagnostic and Statistical Manual of Ment Disorders DSM IV (1994), relata que os transtornos alimentares se dividem em dois tipos principais: anorexia nervosa e bulimia nervosa. Embora a obesidade não esteja inserida entre estes transtornos, é um fator de preocupação pois, é vista como uma condição de saúde, segundo a International Classification of Diseases (ICD) e geralmente está associada com comorbidades, entre elas, pressão alta, diabetes, dificuldades de locomoção, autoestima baixa devido ao preconceito a ela associada, com fortes evidências de fatores psicológicos importantes presentes na etiologia de um caso particular de obesidade.
A Anorexia com suas peculiaridades aliados a um excessivo e mórbido medo de engordar, uma preocupação exagerada com o peso e a forma corporal, uso de diuréticos e laxantes para expurgar alimentos ingeridos de forma maciça, perda progressiva e visível de peso, se mostra aparentemente como uma ação voluntária (MELIN e ARAÚJO, 2002), porém, a clínica ressalta os conflitos psíquicos envolvidos nesta ação e denota um grande sofrimento.
Os transtornos alimentares como a Anorexia Nervosa (ANA) e a Bulimia Nervosa (BN) são caracterizados pelo medo excessivo de engordar ou tornar-se obeso e distúrbios em relação a percepção do formato corporal, este último, aparece como um dos primeiros sintomas dos transtornos alimentares.
O indivíduo faz uma autoavaliação, influenciada pelo peso e forma corporal, porém, com pensamentos dicotômicos, pois são críticos demais com seus corpos e fazem comparações injustas e extremas, influenciados pelos padrões de beleza impostos pela cultura.
Vemos a atenção seletiva presente neste transtorno, pois os que sofrem dos transtornos citados, acreditam que as pessoas pensam e enxergam seus corpos como eles veem, uma aparência distorcida que, mesmo diante de uma magreza absurda, enxergam seus corpos como se estivessem gordos, ou mesmo quando sabem que são magros, o medo excessivo de engordar faz com que adotem “medidas protetivas”.
Infelizmente são patologias graves, pois elevam o índice de letalidade e limitações físicas, sociais e emocionais, com maior prevalência entre a população jovem.
Estima-se a incidência entre 0,5% e 1% para anorexia nervosa e 1% e 3% para bulimia nervosa em adolescentes do sexo feminino, embora podemos questionar esses números, pelo fato de que apenas os casos mais graves chegam ao conhecimento médico (ABREU e CANGELLI FILHO, 2005).
Há também casos que não preenchem os critérios diagnósticos de anorexia nervosa ou bulimia nervosa, porém, ocorrem com 5% a 10% de jovens do sexo feminino (MELIN e ARAÚJO, 2002).
Foucault (1999) em Vigiar e Punir nos aponta que, para disciplinar, é necessário individualizar o corpo. O autor analisou conventos, escolas, exércitos, fábricas entre outros, e constatou que haviam inúmeras técnicas de procedimentos de distribuição dos sujeitos num modo particular e individual com o intuito de discipliná-los, um modo de colocar cada indivíduo em seu lugar.
Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as presenças e as ausências, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico (Foucault, 1999, p. 123).
Ainda segundo o autor, são modificações para produzir a passagem de mecanismos histórico-rituais, métodos científico-disciplinares, que coloca em funcionamento um mecanismo de poder e controle que denotam uma outra política para o corpo: não se deve mais ter como referência os ancestrais e sim, pautar-se em modelos de medidas comparativas que demarcam uma norma a ser seguida.
Foucault denomina essa “tecnologia” de disciplina, pois ela se pauta em uma lógica para individualizar, trazendo os sujeitos para uma adaptação das normas, regras, esse sistema atualiza os transtornos alimentares uma vez que, colocam os sujeitos magros como socialmente aceitos, amados, ao cumprir com as exigências da adaptação aos estereótipos propagados pela cultura.
Neste caso, é difícil estabelecer uma referência clara entre saúde e patologia, pois os problemas com alimentação e a imagem não traz de forma explícita todo mecanismo aliado ao poder de controle, embora as imagens normatizadoras estejam como estímulo na mídia e sociedade de forma massiva, não se tem clara compreensão que se trata de um discurso onipotente tido como verdade.
Felizmente há tratamento para os transtornos alimentares, para os casos de Anorexia (ANA) embora seja imprescindível uma psicoterapia, a maioria dos casos deve ser aliada aos medicamentos psicofármacos prescritos pelo psiquiatra. Enquanto que a terapia tem o foco da distorção da imagem corporal e a história de vida do sujeito, o medicamento age englobando três aspectos: Transtornos da Imagem Corporal, Sintomas Depressivos e Alterações do apetite.
Segundo (IDA e SILVA, 2007) entre os antipsicóticos e os antidepressivos, a Clorpromazina foi a primeira droga usada no tratamento da ANA, sendo uma droga antipsicótica que bloqueia os receptores de dopamina. A resposta ao tratamento a partir desta droga foi positiva, obtendo uma remissão total dos sintomas. Além da Clorpromazina, outros tipos de psicóticos são prescritos como a Pimozida e a Sulpirida. Dentro dos antidepressivos incluem-se: Amiptilina, Clorimipramina, Maprotilina, Trazodona, Fluoxetina, Ciproheptadina.
Para os casos de Bulimia Nervosa (BN) o tratamento inicia-se com a psicoterapia, mas se não for suficiente, então se introduz o tratamento farmacológico, o auxílio que os antidepressivos trazem na redução dos episódios bulímicos e vômitos, também reduzem os sintomas de depressão e ansiedade.
O tratamento se pauta em dois pilares, Compulsões alimentares e Comportamentos sintomáticos, podem ser utilizados também o lítio que tem efeito placebo, o Fluvoxamine que reduz episódios de compulsão, fome e depressões, o Naltrexone que reduz episódios de compulsões e a Fenfluramina que reduz a ingestão alimentar e o consumo de carboidratos (IDA e SILVA, 2007).
Conhecer sobre os transtornos alimentares é de extrema importância, principalmente na infância e adolescência, já que, nesta fase há muitas modificações biológicas, psicossociais e emocionais, uma fase em que ainda, a personalidade está se constituindo, a conscientização sobre a imagem corporal pode ser de grande ajuda, pois as crianças e adolescentes sofrem alterações corporais e precisam estar mais preparados para viverem essas fases sem que haja uma supervalorização da magreza e da beleza.
Trabalhar o emocional de crianças e adolescentes, é prepará-los para lidar com toda pressão da cultura e mídia, o qual os aliena e distorce a realidade visual, colocando em destaque a ditadura da beleza e aceitação.
Uma baixa autoestima aliada a má alimentação, dietas restritivas e exercícios abusivos se constitui em fator de risco para o desenvolvimento acentuado dos transtornos alimentares.
Conhecer o perfil alimentar das crianças e adolescentes auxilia na identificação dos sintomas que predispõe a comportamentos de compensação e compulsividade.
A educação em todos os aspectos da vida da criança, deve começar cedo, incluindo a educação nutricional com instrução lúdica, com laboratórios que visam despertar na criança um real interesse, não só pelo comer, mas, desenvolvendo o prazer e a alegria na elaboração dos alimentos, conhecendo seus valores nutricionais.
As escolas podem ser um canal favorável para se promover e prevenir comportamentos dissociativos e aumentar as práticas alimentares diversificadas e saudáveis. Alimento e peso corporal podem estar em harmonia, contribuindo com o equilíbrio dos indivíduos, abrangendo a forma e a imagem corporal que constroem sobre si.
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Referências
ABREU, C. N. & CANGELLI FILHO, R. (2005). Anorexia nervosa e bulimia nervosa: a abordagem cognitiva construtivista de psicoterapia. Psicologia: Teoria e Prática, 7(1), 153-165.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. Fourth edition (DSM-IV).Washington (DC): American Psychiatric Press; 1994.
CONTI, Maria Aparecida; FRUTUOSO, Maria Fernanda Petroli; GAMBARDELLA, Ana Maria Dianezi. Excesso de peso e insatisfação corporal. Revista de Nutrição, Campinas, n. , p.491-497, ago. 2005.
CHOPRA, Deepak. What are you hungry for? Copyright da tradução © 2014 Alaúde Editorial Ltda. Título original: – The Chopra solution to permanent weight loss, well-being,
FOUCAULT, M. (1999). Vigiar e punir: Nascimento da prisão (21a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
IDA, Sheila Weremchuk; SILVA, Rosane Neves da. Transtornos alimentares: uma perspectiva social. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza , v. 7, n. 2, p. 417-432, set. 2007 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482007000200010&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 jan. 2022.
MELIN, P. & ARAÚJO, A. M. (2002). Transtornos alimentares em homens: Um desafio diagnóstico. Revista Brasileira de Psiquiatria, 24(3), 73-76.
Organização Mundial da Saúde. Classificação dos transtornos mentais e do comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993.