Suicídio: processo de luto e posvenção | Colunista

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2014) – a cada ano mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio – o correspondente a uma morte a cada 40 segundos.

O Brasil ocupa a oitava posição em relação ao número de suicídios no ranking mundial (OMS, 2014). No período de 2007 a 2016 foram notificados 106.374 óbitos por suicídio no país (BRASIL, 2019).

Dada sua natureza multifatorial – por interagir na maioria dos casos com fatores biológicos, psicológicos, sociais, ambientais e culturais – o suicídio é considerado um fenômeno complexo, um problema de saúde pública que afeta comunidades, cidades e países (OMS, 2014).

Embora seja a prevenção, a medida mais apropriada para reduzir os impactos desse problema, considerando que uma parcela significativa de mortes pode ser evitada quando adotadas estratégias preventivas corretas, também é necessário – diante da complexidade desse fenômeno – investir em ações de posvenção que se refere à assistência aos enlutados e a qualquer pessoa afetada, direta e/ou indiretamente, pela morte de alguém por suicídio.

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O que é posvenção?

Cunhado por Edwin Shneidman (1973), considerado o pai da suicidologia (estudo do comportamento suicida), o termo posvenção, inicialmente, referia-se a ações de ajuda aos sobreviventes – como são denominadas as pessoas enlutadas por suicídio.

Porém, mais tarde, o conceito passou a referir-se não somente à assistência dispensada aos enlutados, mas também a qualquer pessoa afetada – de forma direta e/ou indireta – pela morte de alguém por suicídio.

Isso se justifica porque, as pessoas que em tese não seriam categorizadas como enlutadas por suicídio, também podem ser impactadas pela experiência, a exemplo daquelas que encontram o corpo, os profissionais de saúde, dentre outras, pois mesmo não vivenciando o processo de luto, podem sofrer os efeitos negativos da exposição ao suicídio – o que justifica, portanto, sua inclusão também como alvos das ações de posvenção. 

Nesse contexto, a posvenção objetiva adotar ações a serem realizadas após um suicídio acontecer e que poderão ser implementadas com o intuito de minimizar os danos da morte por esse fenômeno (SHNEIDMAN apud FUKUMITSU, 2019), pois a cada caso de suicídio, no mínimo 100 pessoas são impactadas (SCAVACINI, 2019).

Com efeito, conforme Fukumitsu (2019, p. 56), “o propósito da posvenção deve ser o de abrir espaço onde os enlutados tenham direito de sentir à sua maneira”. 

Para a autora – as intervenções propostas durante a posvenção devem ter o intuito de auxiliar o enlutado a unir as peças de um imenso quebra-cabeça e, juntamente com ele, ajudá-lo em sua travessia diante de um sofrimento sem nome.

Dentre as modalidades de intervenção na posvenção destacam-se: a psicoterapia individual, a autópsia psicológica, os grupos de apoio mútuo, a psicoeducação, entre outras.   

Cabe ressaltar que, além de um processo de intervenção, a posvenção é considerada também uma forma de prevenção, pois parte dos sujeitos enlutados estão mais suscetíveis a apresentar comportamentos suicida em determinado momento do processo de luto (QUESADA et al., 2020).

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Objetivos da posvenção

Sendo a posvenção definida como ações de resposta organizada realizadas após o suicídio, pode-se definir como objetivos dessa proposta de intervenção os seguintes (BEAUTRAIS 2004; SCAVACINI, 2011 apud QUESADA et al, 2020):

  • Facilitar o processo de melhoria do sofrimento e angústia diante da perda por suicídio;
  • Aliviar o sofrimento e outras consequências negativas relacionadas à perda de uma pessoa querida por suicídio;
  • Prevenir o adoecimento de pessoas enlutadas; 
  • Reduzir o risco de comportamento suicida nos sobreviventes;
  • Contribuir para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e estimular a resiliência em enlutados.

Classificação das pessoas expostas ao suicídio 

Além de compreender o conceito de sobreviventes, ou seja, as pessoas enlutadas por suicídio, é importante categorizá-las quanto ao tipo exposição a esse fenômeno para que seja possível melhor definir as diferentes possibilidades de posvenção, considerando as especificidades de cada grupo.

Nesse sentido, Cerel et al (2014) organizam as pessoas que foram expostas ao suicídio em 4 diferentes categorias, a saber: 

1) expostas: todas as pessoas que têm relação com quem faleceu ou com a morte, incluindo as testemunhas.

2) afetadas: aquelas cuja exposição causa uma reação, que pode ser leve ou severa, autolimitante ou persistente.

3) enlutadas por suicídio a curto prazo: pessoas que tem um vínculo com quem faleceu e gradualmente se adaptam à perda com o tempo.

4) enlutadas por suicídio a longo prazo: aquelas cujo processo de luto torna-se uma luta prolongada que inclui um funcionamento diminuído de aspectos importantes de sua vida.

Essa forma de organização (categorias) das pessoas impactadas pela morte de alguém por suicídio, mais que uma mera classificação didática, corrobora para que as pesquisas e intervenções possam ser melhor projetadas a fim de aumentar a efetividade da assistência prestada ao maior número possível de pessoas na posvenção.

Características do processo de luto por suicídio e como intervir

Falar sobre luto (do latim lucto) – mesmo identificando-o como uma resposta universal e ancorada na cultura – pressupõe reconhecê-lo, também, como uma experiência singular – pois a maneira como cada um o vivencia é única, assim como o vínculo que foi rompido (FRANCO, 2010).

Nesse sentido, devemos compreender o luto não como um estado, mas um processo dinâmico e, por sê-lo, não pode ser categorizado como um fenômeno que “se encaixa” em normas generalizantes que desvalorizam a singularidade e o contexto de cada enlutado. Trata-se de uma experiência subjetiva, dotada de muitos significados e simbolismos.

No que tange ao processo de luto por suicídio, além dessa compreensão, é preciso considerar ainda a própria complexidade do fenômeno – um processo disruptivo, doloroso e difícil – o qual desestrutura, fragiliza e abala emocionalmente as famílias e todas as pessoas próximas da pessoa que se auto aniquila (QUESADA et al, 2020).

Dentre as características decorrentes do processo de luto por suicídio destacam-se sentimentos e emoções como a negação, raiva, solidão, impotência, ansiedade, culpa, vergonha, rejeição e tristeza (KREUZ; ANTONNIASI apud QUESADA et al, 2020).

Segundo Fukumitsu (2019, p. 45) “quando o suicídio acontece, é comum que os enlutados se sintam ‘fragmentados’, em virtude do impacto que os avassalou, causando a sensação de desintegração de suas partes”.

Nesse sentido, um trabalho de posvenção com ênfase no acolhimento e investimento na reintegração dessas partes “fragmentadas” é fundamental para que os enlutados possam ressignificar a experiência decorrente da perda por suicídio.

Esse tipo de ação faz-se necessária porque a morte de alguém por suicídio (seja um membro da família ou um amigo) pode ser fator de risco significativo para o desenvolvimento de muitas consequências negativas nas pessoas enlutadas, incluindo o próprio aumento do risco de suicídio (CAIM, 1972; JORDAN; MCINTOSH, 2011 apud COOK et al, 2015).

Disso se depreende que – para além dos efeitos decorrentes da necessidade de (re)adaptar‐se ao mundo sem a existência da pessoa que se foi – o enlutado por suicídio também passa a “conviver” com o aumento do risco de ele próprio, vir a se auto aniquilar.

Nesse sentido, o trabalho de posvenção é fundamental com vistas a minimizar esses efeitos (riscos) por meio de um olhar atento da família, profissionais da saúde e da sociedade como um todo.

Para Vedana (apud QUESADA et al, 2020), é fundamental que o profissional saiba escutar a pessoa enlutada sem julgamentos, censuras ou preconceitos, propondo uma abordagem que favoreça a expressão de emoções e sentimentos; que trabalhe o sentimento de culpa, comum nestes casos, além de propiciar o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento de modo a amenizar o sofrimento dos sobreviventes. 

Em complemento a essa proposta, Fukumitsu (2019) acrescenta que a empatia, a compaixão, o respeito e acolhimento podem proporcionar alívio existencial ao enlutado por suicídio, mas, para tanto, é importante que ele se permita ser ajudado.

Aqui, cabe mais uma vez ressaltar que o processo de luto constitui uma experiência subjetiva. Logo, as ações de posvenção também precisam levar em conta a dimensão singular de cada enlutado.

Sobre essa questão Scavacini (2011) defende a importância de as propostas de posvenção estarem embasadas em estudos e nas necessidades expressas pelos próprios enlutados por suicídio ao considerar que esta não se trata de uma população homogênea, mas sim bastante complexa e heterogênea.

Isso significa, em outras palavras, que pessoas diferentes manifestarão necessidades divergentes durante todo o processo de elaboração do seu sofrimento e luto, requerendo um tipo de assistência coerente com suas próprias necessidades, ou seja, com seu modo singular de vivenciar seu processo de luto.

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Referências 

BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico. Perfil epidemiológico dos casos notificados de violência autoprovocada e óbitos por suicídio entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, 2011 a 2018. Boletim epidemiológico, n. 24, v.50, 2019. 

CEREL, J.; MCINTOSH, J. L.; NEIMEYER, R.A.; MAPLE, M.; MARSHALL, D. The continuum of survivorship: Definitional issues in the aftermath of suicide. Suicide and LifeThreatening Behavior, 44, 591–600, 2014.

COOK, F.; JORDAN, J.R.; MOYER, K. Responding to grief, trauma, and distress after a suicide: survivors of suicide loss, task force. U.S. National guidelines, 2015.

FRANCO, M. H. P. Por que estudar o luto na atualidade? In M. H. P. Franco (Org.), Formação e rompimento de vínculos (pp. 17‐42). São Paulo, SP: Summus, 2010.

FUKUMITSU, K. O. Programa RAISE: gerenciamento de crises, prevenção e posvenção do suicídio em escolas. 1. ed. São Paulo: Phorte, 2019.

QUESADA, A. A.; NETO, C. H. A.; OLIVEIRA, J. M. O.; GARCIA, M. S. Prevenção, proteção e posvenção. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2020. 

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO, 2014.

SCAVACINI, K. Histórias de sobreviventes do suicídio: vol.2. São Paulo: Instituto Vita Alere, 2019.

__________. Suicide survivors support services and postvention activites: the availability of services and na intervention plan in Brazil. Karolinska Instituet: Master Program in Public Health, 2011.

Por Sanar

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