É notável que, apesar da graduação em psicologia oferecer um direcionamento básico aos estudantes sobre os caminhos possíveis a serem seguidos após o fim da sua formação, o grande número de possibilidades ainda parece deixar muitos recém formados em dúvida sobre com qual desses caminhos ele se identificam mais.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), por exemplo, lista doze especializações reconhecidas, as quais configuram esses caminhos possíveis para os recém saídos da graduação, são elas¹:
- Psicologia Escolar/Educacional;
- Psicologia Organizacional e do Trabalho;
- Psicologia de Trânsito;
- Psicologia Jurídica;
- Psicologia do Esporte;
- Psicologia Clínica;
- Psicologia Hospitalar;
- Psicopedagogia;
- Psicomotricidade;
- Psicologia Social;
- Neuropsicologia;
- Psicologia em Saúde.
Esse grande número de especializações representa muito bem o quanto a Psicologia é abrangente e atuante dentro da sociedade, entretanto, aqui falaremos especificamente sobre uma especialização, a neuropsicologia.
Relativamente jovem a nível nacional, o surgimento da neuropsicologia brasileira está intimamente relacionado ao médico pediatra Antônio Branco Lefévre, que através de uma tese desenvolvida em meados dos anos 50, passou a ser considerado patrono e fundador da neuropsicologia no Brasil (HAZIN et al., 2018).
Apesar da história da neuropsicologia no Brasil ter começado na metade do Séc. XX, a especialização só foi devidamente reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia através da resolução 002/2004².
O que é neuropsicologia?
Em termos gerais, pode-se conceber a neuropsicologia como uma ciência que resulta da integração entre os conhecimentos da psicologia e das neurociências. Nesse sentido, as neurociências oferecem um subsídio teórico sobre a estrutura e as funções do sistema nervoso, enquanto a psicologia se ocupa em estabelecer modelos para os processos cognitivos, as emoções e o comportamento (STRINGER, 2011).
Apesar do enfoque dado a interação entre modelos cognitivos e modelos neurais, a neuropsicologia se baseia essencialmente na interdisciplinaridade, agregando instrumentos, conhecimentos e técnicas de uma série de outras áreas, como por exemplo a psiquiatria, a neurologia e a fonoaudiologia (HAASE et al., 2012).
A evidente necessidade da prática interdisciplinar na neuropsicologia é entendida mediante a constatação de como déficits cognitivos e disfunções/lesões cerebrais afetam várias esferas da vida de um paciente, tornando necessário o diálogo com outras ciências que se apresentem como pertinentes durante o processo de intervenção e recuperação.
A prática em neuropsicologia
Conforme reconhecido pelo CFP, a atuação em neuropsicologia compreende três atividades principais, são elas: avaliação neuropsicológica, reabilitação neuropsicológica e pesquisa.
A avaliação neuropsicológica é um processo de investigação que, ao contrário do que se pensa normalmente, inclui não apenas a testagem dos processos cognitivos (ou seja, a aplicação de testes), mas também a observação, a entrevista e o uso de escalas para avaliação de sintomas (MALLOY-DINIZ et al., 2016). No que concerne a utilização de testes, vale ressaltar o compromisso ético do profissional, que deve utilizar instrumentos devidamente padronizados e validados pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI).
Conforme organizado por Camargo, Bolognani e Zuccolo (2014), os objetivos da avaliação neuropsicológica são: Auxílio diagnóstico, prognóstico, orientação para o tratamento, auxilio para o planejamento da reabilitação, seleção de pacientes para técnicas especiais e perícia, quando aplicado no contexto forense.
Nota-se ainda que, com o advento de técnicas de imageamento e mapeamento cerebral cada vez mais sofisticados e precisos, a avaliação dos pacientes através de correlações anátomo-clínicas entre lesões/disfunções cerebrais e sintomas clínicos cresce e melhora cada vez mais.
A reabilitação neuropsicológica diz respeito à intervenção realizada para melhorar o funcionamento cognitivo, emocional e psicossocial do sujeito acometido por sintomas resultantes de uma disfunção/lesão cerebral (YI, 2011). Como mencionado anteriormente, os procedimentos e métodos utilizados durante o processo de reabilitação devem ser orientados pelos dados obtidos através da avaliação neuropsicológica, que vai fornecer uma caracterização mais específica do quadro clínico do paciente e auxiliar no processo de intervenção.
A partir da forma como o processo de reabilitação neuropsicológica se configura, é necessário evidenciar que se trata de um trabalho fundamentalmente colaborativo, que envolve não apenas a pessoa com o déficit, mas também sua rede de apoio, toda a equipe terapêutica e até mesmo membros da comunidade em geral (ABRISQUETA-GOMEZ e SILVA, 2016).
Os métodos e instrumentos utilizados pelo neuropsicólogo durante sua intervenção são bastante variados e podem mudar conforme o tipo de reabilitação utilizado e a abordagem empregada, desde treinamento cognitivo através de atividades, tarefas e exercícios, até técnicas que usam aparatos tecnológicos, como o neurofeedback (ANDRADE, 2014; MURATORI e MURATORI, 2012).
A neuropsicologia, enquanto ciência e profissão, se baseia em pesquisas, que funcionam como uma interface entre os modelos teóricos e a prática clínica. A partir disso, entende-se que a pesquisa em neuropsicologia se preocupa em investigar a relação entre os processos cognitivos, o comportamento e a estrutura e o funcionamento do cérebro, desenvolver novos instrumentos e contribuir para o surgimento de métodos cada vez mais sofisticados de avaliação e reabilitação neuropsicológica.
A pesquisa em neuropsicologia está fortemente associada aos métodos utilizados em áreas adjacentes, como a neurociência experimental, a psicologia experimental e a psicometria. Nesse sentido, é imprescindível ressaltar as contribuições de cientistas muito relevantes, do ponto de vista histórico, para o surgimento e o desenvolvimento da neuropsicologia.
Pode-se destacar, por exemplo, as contribuições de Paul Broca e Carl Wernicke no estudo das afasias, as inestimáveis contribuições de Alexander Luria, que em meados do séc. XX propôs inovações metodológicas no processo de avaliação clínica e desenvolveu o modelo das três unidades funcionais (CAGNIN, 2010).
Considerações finais
É relativamente simples constatar que a formação em psicologia possui um número considerável de possibilidades de atuação e especialização, o que pode dificultar a escolha de recém-formados ou mesmo de psicólogos já atuantes no mercado que desejam mudar de especialidade ou buscar uma formação complementar. Com base nisso, a neuropsicologia se apresenta como uma opção altamente viável, principalmente por seu caráter emergente e constantes atualizações teóricas e metodológicas.
Na atuação em neuropsicologia o profissional vai estar frequentemente dialogando com outras áreas da saúde e baseando sua intervenção na interdisciplinaridade, contemplando todos os aspectos da vida do cliente que se mostrarem pertinentes ao seu tratamento.
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Referências
¹Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP n° 003/2016.
²Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP n° 002/2004.
HAZIN, Izabel et al. Neuropsicologia no Brasil: passado, presente e futuro. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 18, n. 4, p. 1137-1154, 2018.
HAASE, Vitor Geraldi et al. Neuropsicologia como ciência interdisciplinar: consenso da comunidade brasileira de pesquisadores/clínicos em Neuropsicologia. Neuropsicologia Latinoamericana, Calle, v. 4, n. 4, p. 1-8, 2012.
STRINGER A.Y. (2011) Neuropsychology. In: Kreutzer J.S., DeLuca J., Caplan B. (eds) Encyclopedia of Clinical Neuropsychology. Springer, New York, NY.
MALLOY-DINIZ, LEANDRO F. et al. O exame neuropsicológico: o que é e para que serve. In: MALLOY-DINIZ, Leandro F. et al. Neuropsicologia: aplicações clínicas. Porto Alegre: Artmed, 2016. Cap 1, p. 27-40.
CAMARGO, Candida Helena Pires; BOLOGNANI, Silvia Adriana Prado; ZUCCOLO, Pedro Fonseca. O exame neuropsicológico e os diferentes contextos de aplicação. In: FUENTES, Daniel et al. Neuropsicologia: Teoria e Prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. Cap 6, p. 77-92.
YI A., Belkonen S. (2011) Neuropsychological Rehabilitation. In: Kreutzer J.S., DeLuca J., Caplan B. Encyclopedia of Clinical Neuropsychology. Springer, New York, NY.
ABRISQUETA-GOMEZ, Jacqueline; SILVA, Katiúscia Karine Martins da. Fundamentos da reabilitação cognitiva. In: MALLOY-DINIZ, Leandro F. et al. Neuropsicologia: aplicações clínicas. Porto Alegre: Artmed. 2016. Cap. 15, p. 240-261.
MURATORI, M. F. P.; MURATORI, T. M. P. Neurofeedback na Reabilitação Neuropsicológica Pós-Acidente Vascular Cerebral. Revista Neurociências, [S. l.], v. 20, n. 3, p. 427–436, 2012.
ANDRADE, Sancler. Fundamentos da reabilitação neuropsicológica. In: FUENTES, Daniel et al. Neuropsicologia: Teoria e Prática. 2. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. Cap. 29, p. 359-376.
CAGNIN, Simone. A Pesquisa em Neuropsicologia: Desenvolvimento Histórico, Questões Teóricas e Metodológicas. Psicol. pesq., Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p. 118-134, dez. 2010.