Um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde é a equidade. Mas, será que ele é colocado em prática? Hoje vamos falar sobre o impacto do racismo estrutural na condição de saúde da população negra. O assunto é sério e deve ser de interesse de todos os profissionais da área. É o seu caso? Então, chegue mais.
Para avançarmos nessa discussão, conversamos com a Fisioterapeuta e Médica Veterinária Professora referência de Fisioterapia Pediátrica e Neonatal da Sanar Saúde, Luciane Marieta. O resultado dessa conversa incrível você vê agora. Confira!
O racismo estrutural e a condição de saúde da população negra
Para a profissional, o racismo afeta de todas as formas. Luciane comenta que o fato do Brasil não se ver como um país racista, mascara uma realidade cruel vivida diariamente pelos negros.
Afinal, quem nunca escutou que aqui “somos todos mestiços”. Esse comportamento, segundo a profissional, é um complicador: “ Isso dificultar o acesso a saúde, pois se somos todos mestiços, as estratificações deixam de ser feitas, os dados oficiais deixam de ser gerados, os agravos deixam de ser analisados conforme cor/raça, dificultando a implementação de políticas específicas de saúde para população negra, pensando na aplicabilidade de um dos princípios fundamentais do SUS, que é a equidade e nos mantendo na invisibilidade quanto às nossas vulnerabilidades na saúde”.
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Dados comprovam
Dados do DataSus sobre prematuridade, referentes aos resultados preliminares de 2020, por exemplo, comprovam o que Luciane diz.
O fato é que no período tivemos uma média de 31.347 óbitos infantis, sendo que 16.630 estavam entre a população negra. Dentre as crianças nascidas vivas no Brasil, foram 20.606 prematuros. Desses, 18.024 foram da raça negra (aproximadamente 90%) – com um total de 15.159 nascidos entre 32 e 36 semanas de idade gestacional.
Luciane comenta que as crianças negras estão nascendo mais precocemente, sendo submetidas à maior situação de risco de morte. Elas, portanto, devem apresentar maiores agravos durante o desenvolvimento infantil.
Além disso, precisarão de um maior período de acompanhamento com equipe multiprofissional para adequar o desenvolvimento neurológico psíquico e motor. Isso, claro, acarretará maior demanda de tempo e investimento financeiro dessa família.
Sem dizer que, que por muitas vezes, os familiares precisarão sair do trabalho para atender as necessidades da criança – acompanhamento médico, fisioterápico, fonoaudiológico, nutricional, entre outros, de maneira rotineira.
Ou seja, é uma bola de neve, considerando que esse grupo racial já vive em maior situação de vulnerabilidade social e econômica.
Colorismo
A especialista frisa: negro é a junção de preto e pardo, segundo critérios utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e isso faz parte da fragmentação pelo colorismo.
O colorismo ou a pigmentocracia nada mais do que a discriminação pela cor da pele. É disso que estamos falando e, infelizmente, trata-se de uma realidade muito comum não só no Brasil.
Esse conceito destaca que quanto mais pigmentada uma pessoa for, mais exclusão e discriminação ela irá sofrer.
Aqui vale lembrar também que a pessoa pode ser negra de pele preta ou negra de pele parda. É uma questão autodeclarada, ok?
Como a equipe multidisciplinar de saúde pode combater o racismo
Quando falamos de acesso e assistência à saúde da população negra, falamos também das pessoas que estão na linha de frente. Entre elas estão enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e dentistas.
Para a equipe multiprofissional de saúde avançar contra o racismo, é fundamental se informar, buscar se atualizar e ampliar conhecimentos sobre as necessidades de saúde da população negra. Sempre, tendo empatia sobre os seus itinerários terapêuticos, que são em sua maioria um caminho de via crucis. Sem exageros.
Ou seja, os caminhos percorridos por indivíduos pertencentes a camadas de baixa renda para tentarem solucionar seus problemas de saúde são bem sofridos. O acesso a informações de prevenção e promoção de saúde é também um complicador.
Quanta doença poderia ser evitada se esse acesso fosse mais justo?
“Um ponto simples de ser executado e que gera uma diferença muito grande nos sistemas de informação de saúde é valorizar o preenchimento do critério cor|raça em todas as fichas, principalmente nos serviços públicos e nas fichas de notificação compulsória”, defende a nossa especialista.
Processos formativos em Saúde: como abordar o racismo
Para que a realidade do atendimento possa acompanhar as necessidades e demandas específicas da população negra – atendendo aos princípios básicos do SUS, como equidade e universalidade, por exemplo, é preciso penar no processo formativo de quem faz saúde no Brasil.
É necessário abordar a saúde da população negra em cursos técnicos até a formação na academia, sem esquecer de fortalecer o processo nas especializações e na educação continuada.
“O negro precisa ser respeitado como qualquer outro cidadão em sua totalidade. Se velamos esse debate nesses espaços, fortalecemos esse ciclo vicioso, latente e nocivo que irriga a sociedade. Precisamos tornar o debate sobre o tema mais plural e transversal aos saberes em saúde”, ressalta a Luciane Marieta.
Profissionais de saúde negros
Nossa especialista é mulher, negra e fala com a propriedade de quem atua na área, estuda a questão a fundo e dialoga com seus pares.
Ela relata que os profissionais de saúde negros comumente sofrem racismo em seus locais de trabalho. “O saber do profissional de saúde negro é sempre contestado independente de sua qualificação, capacidade e habilidade. Rotineiramente, nas unidades de saúde negros usando jalecos segundo a visão popular nunca estarão ocupando os espaços de médicos ou médicas ou dentistas, nem em um cargo de coordenação”, comenta.
Ela conta ainda que já viu, em muitos serviços públicos, pessoas autodeclaradas brancas se negarem a serem avaliadas por médicos e médicas negras. Também já presenciou muitos serviços privados, de maneira velada, não contratarem profissionais de saúde de pele preta por não atenderem os interesses do público local.
Para mudar isso, é preciso, segundo Luciane, admitir que o Brasil é racista, conscientizar, denunciar atos e empresas e buscar a penalização judicial do evento. Se calar, acredita, é sempre a pior opção.
Também é preciso voltar à questão do processo formativo e da atualização sobre a realidade do negro brasileiro. Assim como transformar processos, políticas públicas e por aí vai.
Acesso à saúde da população negra brasileira: como melhorar?
É fato que o acesso à saúde da população negra só será melhor com a implementação de políticas adequadas de saúde com foco nesta população.
Além da implementação, essas políticas precisam fomentar programas que sejam de fácil acesso e funcionem de maneira integral. É o que explica a nossa especialista: “de nada adianta existir uma política para a saúde da população negra que tenha um programa para acompanhamento da hipertensão, mas que esse acompanhamento não seja realidade nas unidades de saúde da família, por exemplo”, reforça.
Agora, antes de encerrar esse conteúdo importantíssimo, vamos dedicar um espaço à vivência da nossa professora referência, Luciane Marieta, que nos ajudou a construir esse artigo. Confira:
Relato
“Não foi, não é e infelizmente está longe de ser uma tarefa fácil ser mulher negra profissional de saúde. As formas de racismo vêm de diversas maneiras. Escolhi percorrer o caminho da informação, então busco sempre conversar sobre o tema nos serviços em que trabalho, tanto no ramo da educação quanto no da assistência à saúde. Busco enfraquecer comportamentos não só racistas, mas segregadores de uma maneira geral, incentivando colegas multiprofissionais a realizarem uma escuta qualificada dos usuários negros do sistema de saúde, respeitando-os. Nunca tivemos tanto espaço para dialogar sobre o tema, mas também nunca fomos tão impunemente atacados”
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