O suicídio, do latim sui (si mesmo) e caederes (ação de matar), é considerado uma manifestação humana, uma forma de lidar com o sofrimento, uma espécie de saída para livrar-se da dor de existir (RIGO, 2013).
Pode ser definido como “todo ato executado pelo próprio indivíduo, cuja intenção seja a sua morte, através de um meio no qual o indivíduo acredita que vai resultar no fim da sua vida” (CORRÊA; BARRERO, 2006, p. 30).
Trata-se, portanto, de um fenômeno complexo e multifatorial – não podendo ser compreendido somente por uma faceta, pois na maioria dos casos, pode interagir com fatores psicológicos, psiquiátricos, econômicos, culturais e religiosos que precisam ser levados em consideração (FUKUMITSU; SCAVANCINI, 2013) – o que o caracteriza não apenas como um problema individual, mas também social.
Suicídio: um problema de saúde pública
Considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2000), um grave problema de saúde pública – o suicídio representa uma das dez principais causas de morte em todos os países e a segunda maior causa de óbitos entre jovens de 15 a 29 anos (BRASIL, 2019).
De acordo com OMS (2014), todos os anos, 800 mil pessoas morrem por suicídio no mundo – o que resulta em uma vida perdida a cada 40 segundos. Em comparação a outros fenômenos fatais, o suicídio responde por 57% das mortes violentas no planeta, com um total de vítimas superior à soma de homicídios e mortes em guerras (WHO, 2018).
Estima-se que, para cada suicídio, ocorrem de 20 a 30 tentativas (OMS, 2014), sendo a taxa mundial de morte por suicídio 11,4 por 100 mil habitantes, variando entre os diversos países (BOTEGA, 2015).
Nesse cenário, o Brasil ocupa a oitava posição em relação ao número de suicídios no ranking mundial (OMS, 2014). Segundo dados do Ministério da Saúde (BRAIL, 2019), no período de 2007 a 2016, foram notificados, no país, 106.374 óbitos por suicídio.
A prevalência de tentativas de suicídio é maior no sexo feminino. Apesar de esse índice ser mais elevado em mulheres, o número de mortes por suicídio é três vezes maior em homens (OMS, 2014) – sendo a principal justificativa para essa diferença o fato de que os métodos utilizados pelos indivíduos do sexo masculino são geralmente mais violentos e letais que os adotados pela população feminina (CANTOR; BAUME, 1998).
Nesse sentido, o suicídio compreende um processo complexo, multifatorial, que envolve uma interação de aspectos sociais e individuais.
Dentre os fatores de risco sociais, pode-se mencionar: ausência de suporte social, bullying, isolamento social, perda de emprego e crises econômicas. Já os fatores de risco individuais incluem: história familiar, genética, adversidades na primeira infância, principalmente, abusos físicos, sexuais e negligência; déficits cognitivos, alta ansiedade, uso de substâncias psicoativas e álcool, traços de personalidade e alta impulsividade; desesperança e psicopatologias (TURECKI; BRENT, apud QUESADA et al, 2020).
Mas embora se configure como um problema complexo, 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados se priorizadas ações que levem em consideração o monitoramento das populações de risco e o aperfeiçoamento dos serviços de saúde mental, além do investimento necessário para qualificar trabalhadores que atuem nesta problemática (WHO, 2018; BOTEGA, 2014; BERTOLOTE; FLEISCHMANN, 2012 apud JÚNIOR; CADONÁ, 2019).
Ou seja, embora represente um grave problema de saúde pública, é possível evitar a maioria das mortes por suicídio, desde que haja compromisso dos países em desenvolver ações diversas e políticas públicas voltadas para esse objetivo.
Suicídio e Gestalt-terapia
Para a Gestalt-terapia o suicídio configura a confirmação concreta da descontinuidade do sentido de vida. Assim, compreender esse fenômeno sob a perspectiva gestáltica, demanda acolher a dor existencial decorrente de várias fragmentações (FUKUMITSU, 2019).
Criada a partir de uma série de influências teóricas e filosóficas, a Gestalt-terapia acredita que o homem, em seu processo de vida, é capaz de fazer escolhas sobre o que pretende fazer e deseja ser (CARDELLA, 2002), sendo, portanto, considerado um ser livre e responsável por construir a própria existência.
Com efeito, compreender o fenômeno do suicídio sob a perspectiva da Gestalt-terapia, demanda reconhecer que o indivíduo que busca esse ato é responsável por sua existência, suas escolhas, sendo relevante entender não exatamente os motivos, mas como sua vida está sendo experienciada naquele momento.
Com isso, busca-se investigar não somente as razões, mas também o que a pessoa está percebendo no momento em que escolhe o ato suicida como única saída para lidar com sua condição de sofrimento (FUKUMITSU, 2012).
Compreende-se que as pessoas com comportamento suicida apresentam uso disfuncional de suas potencialidades e recursos, demonstrando dificuldades de contato com o meio e, consequentemente, baixo nível de fluidez e permeabilidade na sua fronteira de contato, definida como o locus do contato onde organismo e ambiente interagem (SALOMÃO; FRAZÃO; FUKUMITSU, 2014).
Ao se considerar que é através da fronteira de contato que o sujeito consegue atingir seu equilíbrio homeostático, ou seja, a satisfação de suas necessidades, compreende-se que o processo de adoecimento psíquico ocorre quando essa fronteira perde sua função de permeabilidade, fluidez ou mesmo desaparece da relação, resultando na perda da distinção entre o self e o mundo e em formas não saudáveis de relação entre ambos (YONTEF, 1998).
Disso se depreende que não podemos analisar o fenômeno do suicídio como algo isolado do contexto onde ele acontece, haja vista que, em situações de desespero, a awareness (saber da experiência) fica restrita e o contato empobrecido.
Segundo Fukumitsu (2012), mensagens de alienações de contato na corporeidade da pessoa que pensa em se matar são muito notórias. A autora defende que as dores emocionais e físicas revelam a capacidade de encontrar seu sentido, conter e manter coisas em vida e revelam também a capacidade para entender que os sentimentos e pensamentos são expressos pelo corpo.
Quando uma pessoa, em situação de sofrimento, se responsabiliza pelo que faz consigo, o conceito de saúde se faz presente. Em oposição, quando esta fluidez não ocorre, existe, consequentemente, uma alienação da existência física e daquilo que é organicamente próprio, incluindo a desapropriação também dos sentimentos, dores, movimentos, ações que são partes integrantes do corpo (FUKUMITSU, 2012).
Essa perspectiva sobre o corpo é importante para reconhecermos que o sujeito que ameaça se suicidar ou mesmo comete tal ato é um ser no mundo corporificado e corporeidade é contato (RIBEIRO, 2006). Enquanto corpo, estamos sempre em interação com o meio e, esta, se dá por meio das funções de contato.
Desse modo, a ameaça de suicídio, para além de um comportamento patológico, configura também um modo possível de o sujeito funcionar e satisfazer às demandas do ambiente. Ou seja, embora configure esta, uma ação violenta, é a única alternativa que, naquele momento, diante de um complexo sofrimento, o indivíduo enxerga como alternativa para lidar com sua falta de sentindo.
Aqui – considera-se que o sujeito que busca o ato suicida não necessariamente visa, em si, pôr um fim à sua vida, mas sim, à dor que o atravessa naquela ocasião e que parece insuportável.
Corroborando com o exposto, Fukumitsu (2012, p. 96) acredita que “quem pensa em se auto aniquilar em geral são as pessoas que não reconhecem mais seu sentido de vida e não se permitem viver na espontaneidade”. Dito de outro modo, o ato ou tentativa de suicídio, para as pessoas que não encontram mais sentido na vida, representa a única saída possível para destinar sua dor e sofrimento diante de sua impossibilidade de enfrentar os próprios desafios de sua existência.
Com efeito, para Fukumitsu e Scavacini (2013) trabalhar o suicídio sob a perspectiva da Gestalt-terapia, inclui lidar com questões existenciais como falta de sentido, solidão, tédio, medo, sofrimento e ajustamentos criativos disfuncionais. Nesse sentido, é necessário que o sujeito se ajuste criativamente, buscando, a partir do processo de homeostase, a satisfação de suas necessidades, na direção de um equilíbrio dinâmico no campo organismo/meio.
A Gestalt-terapia não acredita em adequação dos comportamentos dos indivíduos. Logo, uma pessoa que pensa na morte como solução para seu sofrimento, vivencia um conflito diante do qual o Gestalt-terapeuta necessita facilitar a reflexão crítica acerca do fluxo de gestalten interrompido. No entanto, não se trata de remover o conflito, mas tratá-lo como um distúrbio do campo (FUKUMITSU; SCAVACINI, 2013).
O conceito de campo é um tema central para a teoria gestáltica. Nessa perspectiva – uma pessoa nunca é fundamentalmente independente ou isolada, mas ao contrário, está sempre em contato e conectada com todas as outras coisas em sentido muito real (JOYCE; SILLS, 2016). Assim, tudo que afeta o campo reflete na dinâmica organismo-meio.
No que tange ao suicídio, a noção de campo é extremamente importante para apoiar a perspectiva de que esse fenômeno não se caracteriza apenas como uma questão do indivíduo, mas, também, como um problema social e, portanto, oriundo do campo relacional do sujeito.
Nesse sentido, a noção de campo é considerada um pilar fundamental da prática e teoria da Gestalt-terapia para uma compreensão holística acerca dos fenômenos que afetam os sujeitos – considerando como relevantes todos os aspectos do corpo, mente e emoção, circunstâncias atuais e históricas, influências culturais, sociais, econômicas, espirituais e religiosas (JOYCE; SILLS, 2016).
Em Gestalt-terapia, a ênfase não é apenas o ato suicida, mas a maneira como a pessoa atua e qual a mensagem existencial encontrada na busca da significação do ato. Ou seja, o foco não se direciona somente para explicação ou o porquê de a pessoa se suicidar, mas para as ideias e crenças que cercam a escolha da pessoa por esse ato (FUKUMITSU, 2012).
Em outras palavras, não é o ato suicida que deve ser estudado, mas a falta de sentido e o não delineamento do processo envolvido, pois o fenômeno visto de forma isolada perde seu sentido.
Por isso, é importante estar interessado não só nos ajustamentos disfuncionais, mas principalmente naquilo que o sujeito ainda apresenta como recursos (FUKUMITSU, 2012). Ou seja, a ênfase no que tange aos cuidados e suporte em relação as pessoas que ameaçam se suicidar deve, sobretudo, voltar-se para o “despertar” dos recursos que esses indivíduos ainda dispõem e, com efeito, possibilitá-los um contato genuíno com seu sofrimento existencial de modo a ressignificá-lo.
Em síntese, o manejo do suicídio, na perspectiva da Gestalt-terapia, deve ter como direcionamento os recursos e fortalecimento do cliente com ênfase na ampliação da awareness, para que, a partir dela, o contato seja enriquecimento, a fluidez da relação entre a figura-fundo possa acontecer, os ajustamentos criativos possam se tornar funcionais e as fronteiras, permeáveis (FUKUMITSU; SCAVACINI, 2013).
É contribuir para que o próprio sujeito que busca o ato suicida consiga se autorregular organismicamente, suprindo, de forma adequada, suas necessidades. É trabalhar enfatizando seu potencial e seus fatores de proteção de maneira que, ao acionar seus melhores recursos, esse indivíduo possa descobrir e realizar novos ajustamentos criativos (FUKUMITSU; SCAVACINI, 2013).
Dessa forma, busca-se que o sujeito possa se sentir vivo e, consequentemente, assumir as “rédeas” de sua vida, ou seja, sua responsabilidade existencial.
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Referências
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