A boca humana é habitat de diversos microrganismos, e como já sabemos, esse microbioma se modifica ao longo da vida do indivíduo, em momentos como a erupção dos dentes e a gravidez, por exemplo. A colonização oral por esses microrganismos não é homogênea, sendo algumas dessas espécies sítio-específicas, com características próprias de ambientação.
Além disso, a boca também é fonte de células-tronco mesenquimais (CTM), em tecidos como a polpa dentária, dentes decíduos e ligamento periodontal. Essas células têm como principal função a regeneração tecidual, podendo migrar para sítios variados, conforme seja necessário.
O microbioma oral, quando desbalanceado, é capaz de causar males orais como cáries, doenças periodontais, problemas endodônticos e infecções odontogênicas. E ainda pode exercer o papel de biomarcador para doenças sistêmicas, como é o caso de doenças cardiovasculares, câncer de pâncreas e pneumonias, surgindo assim a necessidade de pesquisar se as células-tronco bucais também seriam afetadas por esse desequilíbrio.
Entendi, mas qual é a relação?
Na literatura atual, encontramos alguns artigos que conseguem traçar esse paralelo. Su e colaboradores, em 2018, através de estudo que submetia ratos a tratamento com antibióticos, no caso levofloxacina e metronidazol, para alterar o microbioma oral de propósito e estudar o efeito dessa alteração nas CTM, concluíram que o microbioma desbalanceado dificultou a cura de feridas. Além disso, a proliferação de CT também foi inibida no grupo submetido ao tratamento.
Em outro estudo, Bordin e colaboradores, em 2019, ao estudar CTM derivadas da polpa dentária de pré-molares humanos, as expôs durante 21 dias a placa bacteriana, a fim de analisar a capacidade clonogênica destas células após a exposição. Como resultados, obtiveram que o número de clones das CTM foi menor, mas que a diferenciação osteogênica não foi afetada significativamente.
No artigo desenvolvido por Han e colaboradores, também em 2019, através de sua experimentação em CTM de ratos utilizando extrato de Lactobacilos reuteri, concluiu que o probiótico aumentou a capacidade de migração, a expressão de marcadores das CTM, a diferenciação osteogênica e a proliferação também.
Ainda em 2019, Kang e colaboradores estudaram as consequências de expor CTM de gengiva humana excisada a Fusobacterium nucleatum. O resultado foi que a Fusobacterium nucleatum inibiu a proliferação e migração das CTM, além de inibir diferenciação osteogênica, mineralização e expressão de proteínas relacionadas à osteogênese. Além disso, 64 genes da diferenciação celular apresentaram diferenças e a exposição persistente promoveu a liberação de quimiocinas.
Já em artigo publicado em 2020, Kang e colaboradores expuseram CTM gengivais de dentes extraídos a F. nucleatum e analisaram a transcrição gênica destas células. Perceberam então que a estimulação longa por esta bactéria é capaz de acionar genes relacionados ao câncer.
No mesmo ano, Han e colaboradores expuseram CTM gengivais de rato a Porphyromonas gingivalis e Lactobacillus reuteri. Como consequência, descobriram que a Porphyromonas gingivalis inibiu a migração destas células. Em contrapartida, o L. reuteri promoveu essa migração. Então eles concluíram que o equilíbrio entre bactérias patogênicas e os probióticos mantém as funções das CTM gengivais. Em adição, a pesquisa retornou que lipopolissacarídeos (LPS) de bactérias gram-negativas danificam as funções da CTM e que a reuterina, que está presente nos L. reuteri equilibra o microbioma porque é capaz de neutralizar o LPS dessas bactérias.
No estudo de Neves, Yianii e Sharpe, de 2020, CTM da polpa dental exposta de ratos foram estudadas quanto à sua relação com células de defesa (macrófagos e neutrófilos). A descoberta foi que a depleção de macrófagos resultou em diminuição significativa no número de CTM, além de haver a inibição da via WnT, que é uma via de sinalização responsável por organogênese, diferenciação, polarização e migração destas células.
Por fim, Su e colaboradores, em 2020, pesquisando a formação de dentina através de células da polpa dental de incisivos de ratos, encontrou que a ausência de microbiota em ratos de linhagem germs-free resultou em menor dureza dentinária, em formação de pré-dentina mais espessa e em capacidades de diferenciação osteogênicas e odontogênica prejudicadas.
Através destes estudos, podemos concluir que a exposição a bactérias patogênicas prejudica as propriedades das CTM, que o probiótico L. reuteri se mostrou benéfico para as mesmas e que o desequilíbrio do microbioma pode acionar mecanismos cancerígenos. Sendo assim, o desbalanço do microbioma oral revelou ser capaz de modificar as capacidades de CTM de origem oral.
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Referências:
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