Saúde da mulher encarcerada e atuação da psicologia em tempos de COVID-19 | Colunista

Sob a ótica da saúde pública, doenças mentais é um dos diversos desafios a serem enfrentados no sistema carcerário, cujas problemáticas potencializaram em decorrência do covid-19. Isso porque as instituições prisionais não são voltadas para a humanização e ressocialização das pessoas que transgridem as leis penais e, portanto, a lógica penal ainda condiz a ideais punitivos, repressores e como possível influência à prevenção de delitos dos membros da sociedade. Portanto, a psicologia serve como recurso de intervenção de doenças e promoção à saúde no âmbito prisional.

A nova situação do vírus é o maior desafio a ser enfrentado no momento, mas não o único. As apenadas também enfrentam políticas prisionais que ignoram suas necessidades biológicas, como também o abandono, que comumente fora o maior desafio enfrentado pela população carcerária do sexo feminino. Entretanto, as problemáticas da pandemia do covid-19 apenas potencializam os problemas já enfrentados pelas presas (MOTA, 2020).

Identifica-se na história das penitenciárias um fundamento punitivo à privação da liberdade dos indivíduos, ideia esta que já perdura há séculos enquanto a população carcerária apenas aumenta, assim como a reincidência criminal. Deste modo, deve-se repensar a finalidade das penitenciárias, não como um âmbito punitivo, mas sim capacitador de uma possível evolução perspectivista para a população carcerária: didática, empreendedora e motivacional (DEPEN, 2017; DEPEN, 2018; LEAHY, 2019).

Apesar de atualmente parecer impossível pensar em uma reforma penitenciária, deve-se considerar a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 176 que estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado, no qual garante medidas sócio-político-econômicas que conduzam à redução de riscos de doenças. Deve-se então pensar em
alternativas intramuros que suavizem os efeitos do encarceramento em tempos do coronavírus (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988; CHAVES, 2018; OPAS/OMS, 2020).

Indivíduos detidos sob a custódia do Estado possuem seus direitos de acesso à saúde, homens e mulheres. No entanto, a mulher nem sempre tem acesso a esses direitos, pelo fato de que estes foram baseados e construídos sob a ótica das necessidades do sexo masculino, que constitui 95% da população carcerária nacional. Dessa forma, a estrutura, os protocolos, os procedimentos e as diretrizes das normas constitucionais muitas vezes não atendem às necessidades das mulheres encarceradas (DEPEN, 2018).

Os problemas advindos do sistema de justiça criminal brasileiro permeiam um sistema penal seletivo, elitista, racista e excludente. No entanto, há quase dois séculos a Constituição Política do Império do Brasil (1824) em seu artigo 179 já estabelecia que todas as instituições carcerárias tivessem condições habitáveis, ausentes de tortura física e desmerecimento entre raça e gênero. Todavia, é algo que ainda não está em prática mesmo após quase duzentos anos (MOTA, 2020).

Uma prova disso se apresenta com a vigente superlotação carcerária feminina e a ausência de investimentos na infraestrutura das penitenciárias: tais âmbitos propiciam a formação e o agravamento de doenças, tanto físicas quanto psicológicas. Portanto, são frequentes o sofrimento crônico, ansiedade demasiada, automutilação e até mesmo suicídio (INFOPEN, 2018).

Devido às condições ambientais precárias, pouca higiene pessoal, má alimentação, pode ocorrer o aparecimento ou agravamento de enfermidades do sistema digestivo, como verminoses, gastrite e úlcera, doenças do aparelho respiratório, doenças infecciosas como tuberculose; afecções da pele e doenças sexualmente transmissíveis nesta população crescente (FIOCRUZ, 2020; SANTOS, 2017).

Tais fatores determinantes para os agravos de situações precárias na saúde de mulheres encarceradas são agentes estressores que tornam-as ainda mais suscetíveis ao adoecimento devido às mudanças comportamentais drásticas da retirada de suas liberdades. Apesar de a situação de higiene ser insalubre, com pouca ventilação e a população carcerária ser invisibilizada pela sociedade e pelo Estado, o abandono é, sem dúvidas, o maior dos estressores vivenciados pelas mulheres em cárcere, que cumprem suas penas solitariamente esquecidas por companheiros amorosos, amigos, mães e/ou filhos (OMS, 2010; VARELLA, 2017).

Ainda que seja difícil, a sociedade consegue encarar a prisão do homem, enquanto o aprisionamento da mulher é motivo de vergonha para quem a conhece, pois envolve todo um estigma sobre o papel da mulher na sociedade. O homem quando preso, é acompanhado pela mulher, seja ela uma amiga, vizinha, namorada, mãe, prima, seja esse presídio em outro Estado, ou a poucos quilômetros de distância, já no caso da mulher, seu abandono é total, nem mesmo 10% dessa população recebe visitas (VARELLA, 2017; DEPEN, 2018).

E em tempos de coronavírus, então? Se antes as visitas já eram escassas, agora se encontram ainda mais, neste sistema que escancara a violência.

Apesar de o Conselho Nacional de Justiça (2020) emitir uma nota de recomendações a fim de maximizar os direitos da mulher encarcerada em meio a pandemia, revela-se no cenário atual uma crise sanitária que potencializa as problemáticas já existentes no sistema carcerário, visto que não há precauções efetivas nas cadeias. Desse modo, pode levar ao ressurgimento da epidemia quando os casos em sociedade tiverem diminuído.

Às mulheres que cometem delitos, de acordo com a Lei de Execução Penal (LEP, 2009), devem ser providenciadas as devidas condições de tratamento em sua situação pessoal vigente, em todos os estabelecimentos penais. Sua população majoritária é jovem, negra e solteira, aproximadamente 13 mil são mães e mais de 4 mil possuem doenças crônicas ou respiratórias. No entanto, a execução do artigo terceiro da lei penal é falha e, em muitas situações, sequer a assistência advinda de profissionais da saúde é colocada em prática (INFOPEN/DEPEN, 2018; CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018).

Inclusive, de acordo com o monitoramento do Conselho Nacional de Justiça (2021), mais de 70 mil casos já foram confirmados no âmbito carcerário, concomitantemente a 322 óbitos registrados. Contudo, profissionais da psicologia hão de intermediar para habituar as detentas à essa nova realidade e ao seu novo ambiente, buscar romper os pressupostos tradicionais e auxiliar a minimizar as condições emocionais e comportamentais nocivas à saúde da encarcerada, bem como auxiliar responsável e constantemente quanto aos novos hábitos a serem colocados em prática (CHAVES, 2018; CFP, 2020).

A aglomeração já é uma realidade, com o covid-19 se torna uma combinação letal. Então, a atuação de profissionais da psicologia em situações de emergência, desastres e/ou pandemias é essencial. Consiste em assegurar atendimento com responsabilidade, segurança e ideais preventivos diante dos parâmetros éticos e científicos da profissão, de maneira a assegurar a saúde mental e qualidade de vida às pessoas atendidas, sejam elas detentas, seus familiares ou outros servidores do contexto prisional (CFP, 2020; CRP, 2020).

Para auxiliar psicólogos neste contexto, o Conselho de Psicologia pontuou possíveis novas medidas de prevenção da proliferação do covid-19 para atuação em unidades penais: uso de equipamento de proteção individual como jaleco, óculos, luva, uso constante de álcool em gel, máscara e distância de dois metros quando em âmbitos fechados com atendimento prolongado. A psicóloga também deve avaliar se o atendimento psicológico em âmbitos prisionais deve ser suspenso em conveniência da saúde coletiva (CRP, 2020).

Cabe às psicólogas zelar durante a realização da comunicação entre os familiares que ainda realizam visitas e seus entes aprisionados, orientá-los sobre hábitos que previnem o contágio. Quando não se fizer possível a comunicação verbal, outros meios de comunicação devem ser empregados, como por intermédio de papel e cartazes. Quando não houver utensílios necessários para higienização e, consequentemente, a realização de suas tarefas, deve-se solicitar à direção do estabelecimento prisional, caso suas demandas não sejam atendidas, cabe à psicóloga denunciar ao Ministério Público. O intuito é evitar mais óbitos (CRP, 2020).

Faz-se notório pontuar que apesar da rotina de pressões internas e externas constantes ao se trabalhar em âmbitos carcerários, ainda mais durante a pandemia, o trabalho da psicologia é de neutralidade nas avaliações, e a profissional adequa seu trabalho mesmo que as penitenciárias não ofereçam ambientes adequados para a execução de sua profissão. Apesar deste fato, a atuação no contexto carcerário deve se atentar ao indivíduo e à humanização de seu processo, no decorrer de sua pena (WRUBEL, 2013).

Mas, afinal, como ocorre a realização de tais medidas de promoção à saúde diante da falta de transparência na aplicabilidade de medidas de enfrentamento da pandemia? Como oportunizar às detentas melhores condições de desenvolvimento de condutas que lhes permitam respostas exitosas e adaptativas se previamente ao covid-19 isso já não ocorria com efetividade?

De fato, as estratégias adotadas ainda se encontram insuficientes. Apesar de o isolamento se fazer necessário, a incomunicabilidade absoluta durante a paralisação de visitas se configura como violação de direitos. Em alguns Estados, devido a suspensão de visitas, muitos filhos e demais familiares ficaram sem notícias de suas entes durante meses. No entanto, mesmo tendo sido retomadas as visitas sociais, que ocorrem apenas uma vez a cada 30 dias, após meses sem este recurso, a tentativa de promoção à saúde é parcialmente ineficaz, pois o impacto da vulnerabilidade social se encontra demasiadamente aprofundado (UFPB, 2020; CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).

Dessa forma, seu trabalho consiste em realizar a triagem da presa interna, ter papel ativo na elaboração de propostas que efetivem sua estadia enquanto em cumprimento da pena, aplicar testes psicológicos, elaborar parecer psicológico de cada detenta, atendê-las individual e grupalmente, quando possível, mesmo que à distância, em grupos pequenos, elaborar perfil psicológico, manter cada prontuário atualizado, implementar plano emergencial de reinserção social, entre outros (SANTOS, 2006; NASCIMENTO; BANDEIRA, 2018).

Nota-se que o trabalho da psicologia na sociedade intramuros vai além da perícia, da avaliação psicológica e do exame criminológico, documentos estes solicitados incessantemente pelo poder judiciário. Diante das dificuldades de estabelecer demais práticas de atuação, profissionais da psicologia se percebem por vezes reféns em atuar com demais iniciativas em uma realidade marcada por fatores perversos, que se apresentam potencializados em tempos de super isolamento prisional devido a covid-19 (NASCIMENTO; BANDEIRA, 2018).

Deste modo, à profissional da psicologia é viável assumir uma postura crítica quanto a sua profissão, e eventualmente possibilitar o máximo de apoio psicológico possível às reclusas, seus familiares, e demais colegas profissionais do ambiente carcerário. Faz-se de suma importância manter o contato entre a detenta e seus familiares, agindo como interlocutora quando a teleconferência ou visitas onlines não forem possíveis. Pautar-se na tentativa de manter as relações necessárias entre mães detentas e seus filhos, detentas, suas mães e seus pais, para que o vínculo seja mantido nesses tempos difíceis e o ciclo de desgaste emocional minimizado (NASCIMENTO; BANDEIRA, 2018).

Por ser questão de saúde pública, é relevante que a situação das penitenciárias não fique restrita a elas, deve-se então contribuir com a visibilidade da situação intramuros através do compartilhamento de informações aos familiares e comunidades, quando as detentas não puderem ter esse contato. Profissionais da psicologia não devem contribuir com o descaso do poder público e sociedade civil, devem solicitar, quando possível, a adoção de medidas efetivas, levantar discussões entre os demais profissionais penitenciários sobre possíveis melhorias a serem adotadas.

Conclui-se, portanto, que a superficialidade da divulgação de dados pelos Estados dificulta a organização e realização de novos estudos sobre essa população e, consequentemente, o desenvolvimento e a implementação de novas medidas cabíveis para minimizar o sofrimento de mulheres encarceradas. O colapso da rede de saúde é real e a pandemia apenas potencializou a face massacrante dos presídios, principalmente no que condiz à questão da saúde.

Se apresentar omisso e negacionista à realidade do cárcere é reproduzir as mesmas táticas genocidas e de massacre às populações, em especial a população negra, maioria nos presídios, cujo massacre é silencioso e voraz, como externo ao ambiente carcerário. Dessa forma, à psicologia fica o dever de ter o máximo de preocupação com essa população encarcerada e contribuir com o seu fortalecimento em tempos de pandemia.

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REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição Federal. Planalto: 1988.

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LEAHY, R. L. Técnicas de Terapia Cognitiva. Tradução de Santa Maria Mallmann da Rosa. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019.

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SANTOS, C. T. T. O Sistema Carcerário Feminino Brasileiro à Luz da Lei de Execução Penal e dos Métodos de Ressocialização da Mulher: busca por alternativas concretas de aperfeiçoamento dos presídios femininos no Brasil. 2017. Monografia (Curso de Direito) Universidade Federal do Maranhão, São Luiz. Disponível em , acesso em: 04 abr 2021.

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VARELLA, D. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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