O impacto da pandemia no exercício profissional do nutricionista | Colunista

CONTEXTO GERAL

Desde o final de 2019, um novo coronavírus nomeado de SARS-CoV-2 tem se espalhado pelo mundo, causando uma pandemia e demonstrando sintomas semelhantes à gripe (WANG et al., 2020; ZHANG; LIU, 2020). Após o surgimento desse novo agravo, inúmeros profissionais de saúde buscaram correr atrás de embasamento científico para trazer o que há de melhor em tratamento para o combate da doença.

Na procura por uma assistência de excelência também estamos nós, os nutricionistas. Entretanto, no meio de tantas informações, acabamos nos deparando com uma confusão de debates e a busca pela terapêutica correta passou a ser um desafio em nossa prática diária, uma vez que ainda não existe uma conduta unificada de tratamento para a Covid-19 e as mutações sofridas pelo vírus desafiam os profissionais a se adaptarem às novas cepas que emergiram e dificultam o estabelecimento de novas terapias. 

Historicamente, o estado nutricional foi diretamente relacionado com a intensificação ou prevenção de agravos em saúde, incluindo as infecções virais. Essa relação é estabelecida, principalmente, pela influência que os nutrientes exercem na função imunológica e como são capazes de moldá-la. Essa contextualização de nutrição e imunidade ficou muito mais evidente na pandemia atual, na qual houve uma busca intensa de como tornar os nutrientes ou alimentos instrumentos de prevenção e tratamento para a Covid-19 (NAJA; HAMADEH, 2020).

Entretanto, o que nos chama atenção nessa busca é a forma como ela acontece. A disseminação de informações com pouco ou nenhum embasamento científico estão sendo muito recorrentes durante esse período, o que acaba dificultado o trabalho de conscientização de condutas nutricionais seguras e fundamentadas.

Levantamentos apontam que durante a pandemia, cerca de 60% das notícias de teor falso foram vinculadas à disseminação de informações com relação à saúde (ATEHORTUA; PATINO, 2021). Nesse contexto, além da procura intensa por soluções milagrosas relacionadas à Nutrição, percebemos que o nosso próprio trabalho como nutricionista sofreu o impacto pela Covid-19 e exigiu que nós, profissionais, ampliássemos nosso olhar sobre a assistência que exercitamos nos diversos níveis de atuação, buscando melhor compreender a doença tanto do ponto de vista fisiopatológico quanto os impactos que ela causa na sociedade. 

OS DESAFIOS NA ASSISTÊNCIA NUTRICIONAL EM SEUS DIFERENTES NÍVEIS DE ATUAÇÃO

As aflições que nos atingem como nutricionistas durante a pandemia são difusas e diversas, pois englobam as inúmeras fragilidades assistenciais da nossa atuação profissional as quais incluem, por exemplo, o baixo número de nutricionistas na assistência hospitalar, a falta de reconhecimento da nossa profissão quanto aos outros profissionais da saúde e a limitação de recursos físicos e tecnológicos para atuação profissional. Na Nutrição, não houve um campo de exercício que não foi abalado pela Covid-19.  

Se voltarmos nossos olhos para o cuidado primário em saúde (seja na atenção básica ou privada, bem como voltado para o individual ou coletivo), vivenciamos em 2020 modificações na dinâmica assistencial a partir da liberação do atendimento online pelo Conselho Federal de Nutricionistas. Essa flexibilização do contato por meio virtual permitiu que inúmeros profissionais continuassem seus atendimentos sem expor a si mesmos e aos pacientes aos riscos da contaminação por Covid-19. Essa modalidade também acabou aproximando os profissionais que antes atendiam exclusivamente no espaço do consultório do ambiente domiciliar dos seus pacientes, fortalecendo os laços por meio virtual e criando novas estratégias de interação.

No mesmo contexto da pandemia, estivemos imersos no mar de publicações científicas e tivemos que filtrar as informações e basear nossas condutas nas práticas alimentares saudáveis e sustentáveis, podando os exageros de suplementação e alimentos milagrosos que são difundidos. Além disso, foi necessário, mais uma vez, destacar que a Nutrição possui uma visão ampliada, a qual busca uma prescrição que equilibre os aspectos biopsicossociais dos indivíduos e comunidades. Vale salientar que a Nutrição, por si só, sempre se mostrou desafiadora para nós que a exercitamos como ciência. É possível dizer, ainda, que dentro das áreas da saúde essa é a que mais confronta com influências externas. 

Sendo assim, o cotidiano do nutricionista parece estar cada vez mais cercado de indivíduos com saberes pouco fundamentados em evidências científicas e que desafiam os verdadeiros profissionais através de reforço de práticas perigosas e danosas à saúde.  Além de ter que vencer as próprias limitações pessoais, nós temos que guerrear diariamente no combate às informações infundadas através da utilização de material científico de qualidade e da capacitação profissional.  

Para o ambiente hospitalar, temos impactos importantes no fluxo de cuidado nutricional, uma vez que o manejo nutricional do indivíduo acometido com COVID-19 pode ser considerado como uma das principais ferramentas para auxílio na recuperação e reabilitação do quadro (CAMPOS et al., 2020). Nesse sentido, durante o período da pandemia, a criação de fluxogramas e protocolos para a assistência de Nutrição nos indivíduos hospitalizados foi bastante exigida dos nutricionistas da linha de frente. Os protocolos se tornaram uma forma de assegurar que todos os indivíduos atendidos recebam o mesmo serviço de qualidade e permitiram que alterações deletérias do estado nutricional sejam mais rapidamente identificadas e solucionadas.

Um avanço obtido em 2020 para a área hospitalar foi a definição das atribuições dos nutricionistas no ambiente da Unidade de Terapia Intensiva (UTI), através da Resolução do Conselho Federal da Nutricionistas nº 663/2020. Essas determinações foram primordiais para a validação do nosso trabalho, demonstrando a importância da nossa atuação na manutenção ou recuperação do estado nutricional de indivíduos em estado crítico e nosso papel no desenvolvimento da Terapia Nutricional Oral (TNO), Enteral (TNE) e Parenteral (TNP). A Resolução nos coloca como agentes de destaque no cuidado nutricional que podem vir a somar para a equipe multiprofissional. 

No âmbito social, por sua vez, tivemos o aprofundamento da insegurança alimentar e nutricional no país. Dados recentes apontam que cerca de 59% dos brasileiros entrevistados apresentaram-se em situação de insegurança alimentar durante a pandemia, o que impactou negativamente no consumo de gêneros alimentícios importantes para manutenção da dieta regular da população (GALINDO et al., 2021)

O impacto sofrido nesse nível engloba tanto a limitação ao acesso à alimentos pelas camadas mais carentes da população devido às medidas de distanciamento social e às mudanças do processo de comercialização de gêneros, quanto ao aumento da precariedade das condições de vida, tornando os indivíduos mais suscetíveis às carências nutricionais (RIBEIRO-SILVA et al., 2020).

Observar à olho nu o agravamento das condições de alimentação e nutrição da população brasileira está sendo um dos pontos mais cruéis decorrentes da pandemia e requer, primordialmente, nossa atuação profissional na cobrança e busca por estratégias que visem a preservação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), na manutenção de programas assistenciais que garantam a aquisição de gêneros alimentícios e na disseminação de informações para a população acerca de hábitos alimentares sustentáveis. 

AFINAL, O QUE FICA DE LIÇÃO?

A pandemia da Covid-19 ressignificou nossos processos de trabalho como nutricionistas nos diferentes tipos de assistência. O cuidado ao indivíduo e à coletividade passou a ser visto por uma lente de aumento, que permeia a consolidação das práticas alimentares saudáveis, a desmistificação de informações errôneas sobre Nutrição e a compreensão da relação entre a economia e o acesso à alimentos e serviços. Também incluiu as modificações nos processos de trabalho e a valorização da nossa atividade profissional.

O momento que estamos vivendo nos fez refletir, ainda, que como profissionais da saúde devemos ter consciência quanto à responsabilidade na disseminação de informações e qual o impacto que elas poderão causar em quem as recebe. Dessa forma, devemos buscar fontes confiáveis para disseminação de informações em saúde e exercitar nossa capacitação profissional para melhor assistir a população. Sendo assim, como lição principal fica a ideia que, desde o atendimento ambulatorial até a participação no delineamento de políticas assistenciais, nós temos que ter a consciência que estamos fazendo o máximo para assegurar a saúde (lembrando, ainda, que saúde vai muito além de apenas bem-estar físico) daqueles que assistimos.

REFERÊNCIAS

  1. WANG, L. et al. A review of the 2019 Novel Coronavirus (COVID-19) based on current evidence. International Journal of Antimicrobial Agents, p. 105948, 2020.

  2. ZHANG, L.; LIU, Y. Potential interventions for novel coronavirus in China: A systematic review. J Med Virol. v. 92, n. 5, p. 479-490, mar. 2020.

  3. NAJA, F.; HAMADEH, R. Nutrition amid the COVID-19 pandemic: a multi-level framework for action. Eur J Clin Nutr. p. 74, v.8, p. 1117-1121, 2020.

  4. ATEHORTUA, N.A.; PATINO, S. COVID-19, a tale of two pandemics: novel coronavirus and fake news messaging. Health Promot Int., v. 36, n. 2, p. 524-534, 2021.

  5. CAMPOS, L. F. Parecer BRASPEN/ AMIB para o Enfrentamento do COVID-19 em Pacientes Hospitalizados. BRASPEN J, v. 35, p. 3-5, 2020.

  6. CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. Resolução CFN nº 663, de 28 de agosto de 2020. Dispõe sobre a definição das atribuições de Nutricionista em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 28 agos. 2020. Seção 1. Disponível em: < https://www.cfn.org.br/wp-content/uploads/resolucoes/Res_663_2020.html>. Acesso em 26 abr. 2021.

  7. GALINDO, E. et al. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Berlim: Food for Justice Working Paper Series, 2021.

  8. RIBEIRO-SILVA, R. C. et al. Covid-19 pandemic implications for food and nutrition security in Brazil. Cien. Saúde Colet. v. 25, n. 9, p. 3421-3430, 2020.