Roberto, (pseudônimo) tem cerca de 70 anos. É lúcido, diz não ter doença alguma, emprega bem o português quando conversa, veio sozinho e aparenta ser uma pessoa esclarecida. “É aquela prótese nos dentes de baixo que tá soltando toda a hora, Doutor”. Esse foi o motivo que o trouxe para a clínica. Entrei no consultório juntamente com o cirurgião-dentista que o atende. Eu no canto, observando com os dedos entrelaçados (como quem imita um padre). Me identifiquei, dizendo que era estagiário da clínica e perguntei a ele se podia observar a consulta. Roberto sorrindo disse: “só você, minha esposa e o Doutor que vão me ver sem os dentes, não vai falar pra ninguém isso, viu?”. Entendido como uma permissão.
No instante que o Dr. removeu sua prótese, Roberto se engatou a falar sem parar. Disse que, quando tinha minha idade, passou no vestibular. Trabalhou muitos anos em uma indústria que fabricava plástico, fez carreira e por lá se aposentou. Tem três casas, na qual ele mesmo ajudou a “levantar” há quarenta anos. A conversa tomou uma proporção parecida como escrevo agora: sem interrupções pausas jeito ligeiro urgente rápido causando um certo incômodo esse desespero todo. Ufa! Fato é que eu não podia sair da sala sem saber de todas aquelas histórias. Eu tinha que ouvi-lo. Talvez fosse um dos poucos momentos em que finalmente a pessoa idosa tinha se tornado o interlocutor, saindo de sua condição “construída” de ouvinte passivo: aquele que só escuta.
O momento me fez rememorar o conto “Mineirinho” de Clarice Lispector, um desespero fulminante. Eu ainda sem entender o objetivo de me dizer tantas coisas, tendo em mente a hipótese de ser apenas ansiedade antes do procedimento, concordei com ele e o elogiei: “Fez bastante coisa, parabéns.”. Retrucou: “É, moço, eu não tenho dentes, mas fiz muita coisa nessa vida, viu?”.
A experiência daquela tarde me trouxe alguns questionamentos. Por que, Roberto decidiu contar todos os seus ganhos da vida (pequenos e grandes) só quando sua prótese foi removida? Tive a impressão que ele quis ser validado; mostrar que mesmo a velhice chegando, não deixaria de ser pai, técnico em materiais plásticos, marido, indivíduo, protagonista de sua própria vida. Seus desejos haviam envelhecido também, mas não esquecidos. A falta de seus dentes era um acontecimento de múltiplos fatores, o edentulismo não o definiria, não era algo descartável.
No art.3 capítulo 1 do Código de Ética Odontológico, é dito que o cirurgião-dentista deve preservar a autonomia do paciente. Nesse momento eu paro pra refletir se na prática isso se faz real. Como é a participação do idoso em seus procedimentos odontológicos? De que forma é explicado o procedimento que será feito em sua boca? E isso é o suficiente para a pessoa idosa compreender? As atitudes e pensamentos que tenho, ajudam a desconstruir ou aumentar estigmas sobre população idosa?
A socióloga brasileira Cecília Minayo, destaca alguns mitos sobre a população idosa, dentre eles, que a pessoa velha é tida como “improdutiva”. Convivemos diariamente com as consequências desse estigma. É subestimada a capacidade de pessoas idosas em seguir prescrições médicas, realizar autocuidado e higiene pessoal. Essa invisibilização da capacidade de independência da população idosa, cria abertura para possíveis abusos que esse grupo poderá sofrer. Analogamente ao pensamento da escritora e psicóloga Grada Kilomba, podemos inferir que há várias formas opressivas de silenciar o sujeito.
O site do CRO-SP aponta que existem na especialidade de Odontogeriatria, apenas 279 especialistas em todo território brasileiro, sendo que São Paulo concentra 64 no estado todo – 37 deles na capital. Refletindo esses dados, trago à memória três conceitos, sendo: intergeracionalidade, longevidade e interseccionalidade, não necessariamente nessa ordem. Produzir atenção odontológica com um olhar integral e humanístico para população idosa não é uma competência exclusiva do profissional Odontogeriatra.
Segundo a proposta de diretrizes curriculares que o MEC divulga, requer-se às Universidades para o curso de graduação em Odontologia formar: “Um profissional capaz de interagir com a sociedade e que tenha capacidade de liderança e sensibilidade social”. As atividades experienciadas nos contextos sociais dentro das clínicas implantadas nas Instituições de ensino ajudam o aluno a desenvolver melhor essa prática.
O conceito de intergeracionalidade significa: a relação entre distintas gerações, com um de seus objetivos, romper leituras equivocadas e discriminatórias a respeito de pessoas velhas. Apesar de parecer um grande desafio, a prática resulta em diversos ganhos e aprendizados, ou seja, a intergeracionalidade vivida em casa, trabalho ou ambiente acadêmico só faz com que as trocas sejam ainda mais enriquecedoras para todos os envolvidos.
O termo longevidade, por sua vez, significa a duração de vida mais longa, e isso é uma realidade social na qual não é possível ignorar. Divulgado pela ONU, à medida que as taxas de fertilidade diminui, a proporção de pessoas com 60 anos ou mais aumenta. Mas a diminuição no número de nascimentos não é o único fator da inversão da pirâmide etária, temos por exemplo: a ampliação do saneamento básico, maior acesso da população aos serviços de saúde, campanhas de vacinação atingindo maior alcance, aumento da promoção de saúde e prevenção de doenças, além do avanço da medicina. Com a possibilidade de se viver mais e com maior qualidade de vida, deve-se pensar melhor nos cuidados bucais desse grupo.
O conceito de interseccionalidade, por sua vez, teve início em estudossociológicos com o movimento feminista negro liderado por mulheres negras dos Estados Unidos, que desafiaram o feminismo radical ao dizer que; “gênero não é o principal fator que determina o destino de uma mulher”. Se faz entendido que, existem corpos que atravessam diversas identidades, e sofrem níveis de opressão e discriminação diferentes entre elas, a depender de diferentes fatores biológicos, culturais e sociais. Essa ferramenta analítica foi potencialmente aplicada às demais categorias.
No interesse dessa narrativa, podemos refletir que o idoso que surge com sua saúde bucal prejudicada não pode ser marcado como aquele que não consegue realizar autocuidado, que não se importa com sua higienização bucal, o “cabeça dura”, pessoa esquecida; o “coitado”. E aquele que conseguiu preservar melhor seus dentes e periodonto não pode ser “o exemplo de envelhecimento pleno”. Vivemos num País excessivamente desigual, onde aspectos sócio-culturais cruzam-se e impedem que indivíduos possam ter acesso à assistência odontológica, tendo ele maior probabilidade de se tornar o idoso que tem sua saúde bucal prejudicada; o “coitado”.
O número de idosos é cada vez maior e os espaços de serviços de saúde precisam estar preparados para estas pessoas, tanto o local (relativo à acessibilidade) quanto profissional (relativo ao cuidado e à assistência prestada).
“Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança”.
(Drummond, 1940. –Os Ombros Suportam o Mundo– Livro Sentimento do Mundo).
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REFERÊNCIAS:
bell hooks: hooks, bell (2014) [1984]. Feminist theory: from margin to center 3rd ed. New York: Routledge. ISBN 9781138821668 (livro: Teoria Feminista 1984).
Grada Kilomba – Memórias da plantação:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/Odont.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v16n3/n16a10.pdf
SESC-SP – como estamos envelhecendo
O Lagarto e a Rosa no asfalto: odontologia dos desejos e das vaidades (Emmerich, Adauto) SciELO – Editora FIOCRUZ,
https://www.culturagenial.com/poema-os-ombros-suportam-o-mundo-de-carlos-drummond-de-andrade/
http://www.crosp.org.br/camara_tecnica/apresentacao/12.html
Interseccionalidade: Wiegman, Robyn (2012)