O governo federal editou nesta semana o Decreto 10.530, que permite a inclusão da Atenção Primária de Saúde no programa de concessões e privatizações, com foco em construção, modernização e operação de Unidades Básicas de Saúde (UBS). A Secretaria-Geral da Presidência da República tentou amenizar a repercussão negativa afirmando em nota que a medida não representa “qualquer decisão prévia”, apenas “estudos técnicos” que podem oferecer “opções de tratamento da questão”.
Depois de toda a repercussão negativa da publicação, o presidente Jair Bolsonaro anunciou a revogação do decreto. Em suas redes sociais, ele informou que o decreto visava o término das obras de 4 mil UBS e 168 Unidades de Pronto Atendimento, já que faltam recursos financeiros para conclusão das obras, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal. Além disso, o decreto permitiria aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União.
Por outro lado, o presidente disse ser “falsa” sua privatização. “A simples leitura do decreto em momento algum sinalizava para a privatização do SUS”, ele escreveu.
Especialistas na área da Saúde pensam o contrário. Pelo fato de a atenção primária ser a “porta de entrada” do SUS, o temor era que a parceria com a iniciativa privada abrisse caminho para privatização do sistema de saúde.
O que dizia o Decreto 10.530/2020
Apesar de revogado, o Decreto 10.530, de 26 de outubro de 2020, tratava de “qualificação da política de fomento” na atenção primária à saúde, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimento (PPI) da Presidência da República. Segundo o documento: “(…) para fins de elaboração de estudos” de alternativas de parcerias com a iniciativa privada”.
O dispositivo determinava que esses estudos deviam dizer respeito à construção, modernização e operação de Unidades Básicas de Saúde dos estados, municípios e do Distrito Federal. Além disso, esses estudos teriam como finalidade inicial estruturar projetos pilotos que posteriormente passariam pelo crivo da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia.
Em nenhum momento o Ministério da Saúde, responsável por gerir o SUS no Brasil foi mencionado. Inclusive, quem assina o decreto são o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes.
O que especialistas pensam
O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, disse ser arbitrária a decisão do governo federal em editar o decreto. A medida indica intenção de privatizar as unidades básicas de saúde em todo o Brasil, o que implica retirada de direitos e fragilização do SUS.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), por sua vez, afirmou em nota enviada à BBC Brasil que o decreto deixava sérias dúvidas sobre seus reais propósitos. Primeiramente, porque não houve debate; em seguida, por misturar aspectos distintos, como construção, modernização e operação das UBS.
“Por força de lei, decisões relativas à gestão do SUS não são tomadas unilateralmente. Elas devem ser fruto de consenso entre os níveis federal, estadual e municipal, sob pena de absoluta nulidade”, disse a entidade.
O pesquisador em Saúde e Direito Daniel Dourado, da USP, avaliou o decreto como obscuro. Em entrevista ao G1, ele afirmou que a redação do decreto é muito ruim, de modo que não dá pra entender o que está sendo dito. Por outro lado, lembrou que o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) é um programa que trata de concessõeos e privatizações.
“A questão é que já existem modelos de parcerias público-privadas na saúde. Não é disso que se trata. O que a gente pressupõe é que eles estão tentando buscar um outro modelo. O que eu acho preocupante desse decreto é que ele não vai tratar de algo que já existe. Se fosse, não precisaria fazer um decreto dizendo que vão estudar novos modelos de negócios”, afirmou o especialista à publicação.
O pesquisador lembrou que o direito à saúde está assegurando na Constituição de 1988 e se trata de uma cláusula pétrea. Por causa disso, qualquer tentativa de aplicar a lógica da iniciativa privada dentro do SUS é inconstitucional.
A presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Gulnar Azevedo, observou que se o decreto continuasse vigente, poderíamos perder o controle sobre outras privatizações no SUS. Em casos como esse, seria perdida a integralidade determinada pela Constituição, porque uma operadora de saúde não trabalha do mesmo jeito que outra.
Referências
Privatização do SUS? Entenda decreto de Bolsonaro sobre unidades de saúde
O que dizia a polêmica proposta sobre Unidades Básicas de Saúde, que acabou revogada por Bolsonaro