Não é vitimismo, não é “mimimi”: a população negra vivencia especificidades que exigem um atendimento de saúde mais cauteloso e atencioso. Não é à toa que o dia 27 de outubro é o Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra, que busca mobilizar os profissionais de saúde às demandas específicas desse grupo social.
Existem fatores que enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, nutricionistas, dentistas e psicólogos precisam ter em mente ao atender crianças, homens e mulheres negros. A começar: as condições de saúde são influenciadas por diferentes oportunidades e pelos desafios enfrentados pela população negra. Da mesma forma, os riscos e vulnerabilidades são decorrentes de determinantes sociais, políticos, culturais, ambientais e econômicos.
E essa é uma constatação de estudos realizados em todo o Brasil. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam aumento na diferença de rendimentos entre brancos e pretos em 2019. A renda mensal de pessoas pretas equivale a 55,8% da renda mensal de pessoas brancas. Na prática: se os brancos tiveram renda média mensal de R$ 2.999 em 2019, os pretos tiveram rendimento médio de R$ 1.673.
Os fatores socioeconômicos são um dos pontos que todo profissional da Saúde precisa saber ao atender a população negra. Acompanhe esse post até o final para conhecer outros pontos.
Atendimento legal
As especificidades que permeiam a população negra embasaram a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída pela Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. O objetivo do dispositivo é promover a saúde integral desse grupo, priorizando redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e o combate à discriminação nas instituições e serviços do SUS. E esses fatores são reconhecidos pela portaria como determinantes sociais das condições de saúde.
Fruto de uma luta histórica do movimento negro pela democratização da saúde, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra contempla um conjunto de estratégias que veem o sujeito de forma integral. Ou seja, considera suas necessidades, as fases do ciclo de vida, as demandas de gênero e de orientação sexual, patologias existentes e porte de deficiências.
No SUS, a Portaria nº 992/2009 é inserida por meio de estratégias participativas, a partir do quesito cor na produção de informações epidemiológicas. Essa medida permite a formulação de políticas públicas a partir de prioridades definidas, fortalecimento do controle social, desenvolvimento de ações e estratégias de identificação, abordagem, combate e prevenção ao racismo institucional. Além dessas iniciativas, é possível identificar também as ações afirmativas necessárias para que se alcancem equidade em saúde e promoção da igualdade racial.
Doenças prevalentes
Existem demandas de saúde que são prevalentes na população negra, por motivos diversos – seja predisposição genética, seja por fatores socioeconômicos. Um consenso acerca dessas necessidades é a classificação em três categorias:
-
Geneticamente determinados – Como anemia falciforme, deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase, foliculite;
-
Adquiridos em condições desfavoráveis – Desnutrição, anemia ferropriva, doenças do trabalho, DST/HIV/Aids, mortes violentas, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, sofrimento psíquico, estresse, depressão, tuberculose, transtornos mentais derviados do uso abusivo de álcool e outras drogas;
-
Evolução agravada ou tratamento dificultado – Como hipertensão arterial, diabetes melito, coronariopatias, insuficiência renal crônica, câncer e miomatoses.
Dentre as doenças que mais atingem a população negra, destaque para a doença falciforme. Esse tipo de hemoglobinopatia é caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos do sangue, tornando-os parecidos com uma foice. Essas células têm sua membrana alterada, de modo que podem se romper com mais faculdade. A detecção é feita através do exame eletroforese de hemoglobina e do teste do pezinho.
A Bahia é o estado que apresenta a maior incidência da doença falciforme no Brasil, com um caso a cada 650 nascimentos. A estimativa é que há 10 mil protadores da doença no estado.
Os sintomas da anemia falciforme costumam aparecer na segunda metade do primeiro ano de vida da criança. O mais frequente é a crise de dor nos ossos e nas articulações, mas poder ser que atinja qualquer parte do corpo. Outro sintoma é a síndrome do mão-pé, que nas crianças as crises de dor podem ocorrer nos pequenos vasos sangüíneos das mãos e dos pés, causando inchaço, dor e vermelhidão no local. Entre outros sintomas estão infecções do tipo pneumonias e meningites em crianças; feridas de perna a partir da adolescência, na região próxima aos tornozelos; e sequestro do sangue no baço.
Fatores sociais
Ao atender a população negra, os profissionais da Saúde precisam ter bem estabelecida a compreensão de que as vivências de crianças, homens e mulheres negras não podem ser generalizadas. Há fatores sociais, econômicos e culturais que interferem no estilo de vida e na saúde dessas pessoas. Por exemplo, a expectativa de vida dos negros brasileiros é seis anos inferior à expectativa de vida dos brancos. Os negros têm 50% mais chance de morrer de Aids ou causas externas, como acidentes e violência.
O estudo Vitel 2018 – População Negra traz ainda outros indicadores sociais que demonstram as especificidades vividas pela população negra e que impactam em sua relação com a saúde. Há cenário desfavorável para a população negra em caso do consumo regular de frutas e hortaliças: 29,5 consomem esses itens, enquanto que na população branca o percentual é 39,1%.
Quanto ao consumo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de ingestão diária de 400g, a discrepância é ainda maior: 20,1 ante 26,7%. Cenário desfavorável ainda quanto ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas (19,2 dos adultos negros entrevistados e 16,6% dos brancos) e da avaliação negativa da saúde – 5,2% dos negros veem sua saúde como não muito boa, ante 4,0% dos brancos.
Há ainda maior frequência de indicadores de excesso de peso e obesidade (55,8% e 21,8%) entre as mulheres negras do que em comparação às mulheres brancas (51,6% e 19,6%). Em relação ao acesso a exames preventivos, as mulheres negras realizam menos mamografias e papanicolau em comparação às mulheres brancas: a relação para a mamografia é de 92,7% ante 95,4% a qualquer momento, 75,5% ante 80,8% nos últimos dois anos; de 85,1% ante 91,7% a qualquer momento, e 78,8% ante 85,2% para realização de papanicolau nos últimos três anos.
Racismo institucional
As diferenças de oportunidades que atingem a população negra são resultado de um histórico racista na qual se estrutura a nossa sociedade, e o racismo institucional é um reflexo disso. Saber de sua existência é o primeiro passo para que os profissionais da Saúde observem sua postura diante de crianças, homens e mulheres negras que buscam por um atendimento.
O racismo institucional se constitui na produção sistemática de segregação étnico-racial e se manifesta por meio de normas, práticas e comportamentos adotados no dia a dia profissional. Essas práticas atingem também os próprios colegas negros, que, antes de serem enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, nutricionistas, dentistas ou psicólogos, são indivíduos negros que passaram por todas as experiências que as condições socioculturais do país obrigam essas pessoas a viverem.
Essa prática racista é reafirmada diariamente pela linguagem, por estereótipos, pelo preconceito e pela discriminação. As mulheres, em particular, são atingidas duplamente: pela cor de sua pele e pelo gênero.
Nesse contexto, os profissionais da Saúde precisam estar atentos às diferentes experiências e condições de nascimento e vida da população negra. Respeito, humanização, acolhimento e compromisso em reduzir as disparidades sociais são algumas práticas são comportamentos que levam ao atendimento adequado às demandas desse grupo.
Referências
Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009