Oi, gente! Tudo bem com vocês? Hoje eu trago um texto sobre um tema difícil de lidar, porém necessário para nós, profissionais de saúde: violência doméstica. Como esse tema implica a área da saúde? Por que é importante que profissionais da Saúde entendam sobre violência doméstica? Pretendo responder a estas e outras perguntas ao longo desse artigo e, assim contribuir para instigar a curiosidade de vocês sobre o tema.
Para iniciar essa conversa, devo dizer que há algumas décadas muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento assistem a um crescente número nas taxas de mortalidade e de morbidade relacionadas a agravos provocados por violências. No Brasil, na década de 1980, as mortes por causas externas (aqui incluídas as decorrentes de violência) passaram a responder pela segunda causa de óbitos no quadro de mortalidade geral, levantando a discussão de que se tratava de um dos mais graves problemas de saúde pública a ser enfrentado (Brasil. Ministério da Saúde,
2001).
Minayo (2013) afirma que a violência constitui um problema social e de saúde pública, que afeta diretamente a população, na medida em que:
- provoca morte, lesões e traumas, físicos e um sem-número de agravos mentais, emocionais e espirituais;
- diminui a qualidade de vida das pessoas e das coletividades;
- mostra a inadequação da organização tradicional dos serviços de saúde e
- coloca novos problemas para o atendimento médico.
Assim, a violência também tem um custo elevado nos âmbitos pessoal, familiar e social, uma vez que afeta a qualidade e duração da vida das pessoas envolvidas. E aponta para a necessidade de que as nossas atuações profissionais aconteçam em rede, de forma mais engajada, interdisciplinar e multiprofissional.
Sobre o conceito de violência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma “é o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação” (OMS, 2002).
A OMS também considerou que a violência pode ser categorizada em três grandes grupos, segundo quem comete o ato violento: violência contra si mesmo – autoprovocada ou autoinfligida; violência interpessoal – doméstica e comunitária; e violência coletiva – grupos políticos, organizações terroristas, milícias (Brasil. Ministério da Saúde, 2016).
Outra forma de classificar a violência refere-se à sua natureza. Essa natureza pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial, moral ou de negligência.
No Brasil temos como importante referência a Lei nº 11.430, de 07 de agosto de 2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Esta norma entende a violência doméstica contra a mulher como uma das formas de violação dos direitos humanos e em seu artigo 5º a define como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” que ocorra no lar, na família e em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual (BRASIL, 2006).
Ainda é muito recorrente acreditar que a violência doméstica é um fenômeno de caráter privado, que envolve de um lado um sujeito irritado, instável e, do outro, um mártir. É preciso entender que a violência doméstica tem como principal vítima direta a mulher e como principal ofensor uma figura masculina. Daí se pode compreender o panorama da violência doméstica – é uma violência de gênero.
Para compreender melhor, observe que apesar de alguns homens relatarem ter sofrido agressão de suas parceiras, é muito improvável encontrar algum que tenha perdido a autoestima e sinta-se destruído psicologicamente pela parceira; viva aterrorizado com receios dos ataques da mulher; sinta-se assustado por não conseguir proteger os filhos; tenha medo de romper com a parceira e acabar sendo assassinado por falta de proteção; que seja abusado sexualmente por ela; tenha perdido a liberdade de ir aonde quer, de estudar ou trabalhar (SOARES, 2005).
Portanto, a comparação entre a violência provocada por homens e a provocada por mulheres não pode ser feita de maneira linear, sem considerar que a violência doméstica é um fenômeno permeado por concepções culturais relacionadas aos papéis sociais de gênero fortemente enraizadas na nossa sociedade. É necessário entender como a socialização das pessoas implica na expectativa e na maneira de ser homem e ser mulher no mundo e como a questão de gênero influencia na violência doméstica.
Imaginário sobre a violência doméstica
Para compreender o fenômeno da violência doméstica e intervir nestas situações, é imprescindível desconstruir algumas crenças que persistem sobre o tema. Uma vez que essas crenças podem desencadear preconceitos e distorções acerca da situação, influenciam diretamente na forma como nós, profissionais e sociedade, lidamos com os atores envolvidos na violência doméstica.
Algumas dessas crenças são:
“Violência doméstica só acontece em relacionamentos ruins, em famílias desajustadas e entre pessoas desequilibradas”.
Nós temos a tendência de patologizar as pessoas e suas relações. Assim, acabamos por simplificar a experiência da violência, que tem como base uma combinação complexa de fatores históricos, culturais, sociais, econômicos,
institucionais, interacionais e pessoais (DINIZ & ANGELIM, 2003). Então é muito importante que saibamos que o fenômeno da violência, sobretudo a intrafamiliar, não deve ser analisado de maneira reducionista.
“A família é porto seguro”.
Nossa sociedade idealiza o papel da família – que de fato tem como função ser protetiva, mas nem sempre desempenha plenamente essa responsabilidade. A edição de 2019 da Pesquisa DataSenado sobre Viole?ncia dome?stica e familiar contra a mulher mostra que, assim como nos anos anteriores, os principais responsáveis pelas agressões relatadas são companheiros e ex-companheiros – incluídos (ex)namorados e (ex)maridos. Observe a figura 1:
Figura 1 – Distribuição proporcional das respostas sobre quem agrediu. Senado Federal, 2019.
“A nossa casa é o lugar mais seguro”.
O local onde os atos de violência predominam são na residência, de acordo com o Boletim Epidemiológico de Vigilância de violência doméstica, sexual e/ou outras violências de 2013 do Ministério da Saúde, conforme mostra a Figura 2:
“A violência doméstica é característica de famílias de classe baixa”.
Esta configuração de violência atinge pessoas independentemente da faixa etária, da condição social, do nível educacional, da orientação sexual e da nacionalidade. A violência é um fenômeno presente em todos os países, e independente do nível de desenvolvimento social, cultural, econômico e tecnológico. O que varia são as razões usadas para justificar os atos violentos (BRAUNER & CARLOS, 2004).
Precisamos desenvolver a compreensão de que família, além de local de afeto e proteção, ao mesmo tempo é composta por relações conflituosas e que podem desenvolver padrões violentos de comportamentos e comunicações. Em razão dessa complexidade, é comum que os episódios de violência estejam envolvidos por segredos e silêncio (DINIZ e PONDAAG, 2004). Toda família tem como uma de suas características o fato de ser composta por alianças entre seus membros. Expor as dinâmicas que se passam no nível privado da família pode significar romper com essas alianças e trair os seus membros.
“É fácil se livrar da violência doméstica/é fácil denunciar/ só fica na relação abusiva quem quer”.
Tomamos como parâmetro comportamentos como o da mídia, por exemplo, que exibe os casos considerando a impessoalidade e o distanciamento dos fatos, e nos esquecemos da dimensão afetiva que acaba por interferir no comportamento das pessoas que vivem a violência. Assim, segredos e silêncios dizem dos muitos medos que as pessoas implicadas costumam sentir. As mulheres que vivenciam a violência correm o risco de não terem respaldo em suas redes sociais para validar suas experiências, dores e queixas (DINIZ & ANGELIM, 2003). Assim, acabam por se calar.
Violência doméstica e saúde mental
Neste artigo me limitarei a falar sobre a saúde mental das mulheres que sofreram (e sofrem) violência doméstica. Não que os agressores não sejam afetados. Mas do ponto de vista da saúde, a maioria dos estudos sobre as consequências da violência doméstica dizem respeito à saúde da mulher, justamente pelo fato de ser a principal vítima e sofrer as piores consequências. Estima-se que a violência de gênero seja responsável por mais óbitos das mulheres de 15 a 44 anos que o câncer, a malária, HIV, problemas respiratórios, metabólicos, infecciosos, acidentes de trânsito e as guerras (MINAYO, 2013).
A depressão é uma das principais consequências da violência doméstica para as mulheres. As que continuam no relacionamento violento estão mais predispostas a desencadear a depressão. Apresentam sintomas tais como “sentimentos de solidão, tristeza, desamparo, descrença, irritação, baixa auto-estima e baixa autoconfiança, que podem caracterizar sintomas distímicos” (JACOBUCCI & CABRAL, 2004). As decorrências incluem, além da depressão e apatia, sintomas fóbicos, ansiedade e desordem do estresse pós-traumático, aumento do uso de álcool e drogas e alterações do sistema endócrino (ADEODATO & COLS., 2005).
Consequência da depressão, a ideação suicida é um fato muito comum em situação de violência doméstica. Nas áreas urbanas do Brasil, 47% das mulheres que já sofreram desta forma de violência têm pensamentos suicidas, índice muito maior do que o de mulheres que nunca foram violentadas, que é de 20% (OMS, 2005). Pesquisas mundiais apontam que 35% do motivo de procura das mulheres aos serviços de saúde são relacionados às consequências da violência conjugal e não são puramente queixas decorrentes de lesões físicas (MINAYO, 2013).
Mulheres vítimas de violência doméstica apresentam uma série de sintomas mesmo quando avaliadas muitos anos após a ocorrência dos eventos traumáticos. Dentre os sintomas a autora destaca a presença frequente de ansiedade generalizada; depressão; dependência; obesidade e distúrbios alimentares (anorexia e bulimia); distúrbios obsessivos-compulsivos (como a tendência de tomar muitos banhos para limpar o corpo da “sujeira” da experiência sexual indevida); distúrbios borderline; automutilação; e disfunções sexuais (ESPÍNDOLA, BUCHER-MALUSCHKE e SANTOS, 2004).
Assim, é possível compreender a dimensão da implicação da violência doméstica na saúde mental da mulher vítima nestes casos. Por isso o olhar do trabalhador do setor Saúde, sobretudo os profissionais de saúde mental, deve estar atento às condições relacionais de suas pacientes.
Últimas palavras
Este artigo não tem a finalidade de esgotar a temática da violência contra a mulher e a relação com a área da Saúde. Mas suscita reflexões importantes acerca das crenças e mitos relacionados a este complexo fenômeno.
Por fim, espero ter contribuindo para que você, profissional da Saúde, tenha reconhecido que o seu campo de saber pode (e deve!) considerar esta reflexão acerca do comprometimento do setor Saúde com as mulheres e famílias que sofreram e sofrem com a violência doméstica.
Desta forma, poderemos realizar atuações mais acertadas e comprometidas com o nosso público e com essa importante questão social ainda tão presente.
Matérias relacioadas:
- O que faz um psicólogo na Secretaria de Saúde do DF
- Psicologia hospitalar: atuação e inserção no mercado
- Terapia Cognitivo-Comportamental: conceitos básicos para intervenção
REFERÊNCIAS:
Adeodato, V. G., Carvalho, R.R., Siqueira, V.R. & Souza, F.G.M. (2005). Qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de seus parceiros. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 39(1), 108-113. Disponível em http://www.scielosp.org/pdf/rsp/v39n1/14.pdf Acesso em 18 de julho de 2020.
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Brasil. Ministério da Saúde (2013). Boletim Epidemiológico Secretaria de Vigilância em Saúde: Vigilância de violência doméstica, sexual e/ou outras violências: Viva/Sinan. Disponível em: http://www.saude.gov.br/images/pdf/2014/junho/11/BE-2013-44–9—-VIVA-SINAN.pdf Acesso em: 17 de julho de 2020.
Brasil. Ministério da Saúde (2016). Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. Disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2016/dezembro/22/instrutivo-viva_2016_FINAL.pdf Acesso em: 19 de julho de 2020.
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