Os Bastidores da Pandemia: o pranto contido dos profissionais de saúde | Opinião

Nina Guimarães [1], Caroline Góis [2], Sandra Rolemberg [3] e Vanessa Miranda [4]

A construção deste texto tornou-se um grande desafio. Ao longo de sua produção parecia-nos impossível redigi-lo como de costume. Ficou evidente a nossa dificuldade em alcançar o distanciamento que muitas produções exigem, a fim de construir uma narrativa lógica, estruturada e clara.

Afinal, esse trabalho é fruto de sensações viscerais que nos arrebataram, causando dor, desatino e desorganização, na tentativa exaustiva de nomear o absurdo, de traduzir o indecifrável, fruto de notícias, estatísticas, informações e trocas com colegas, amigos e familiares.

Ao mesmo tempo em que ele contribuiu para a nossa elaboração pessoal, na tentativa de dar formato ao que sentimos e refletimos em tempos de Pandemia, ele também se propõe como espaço de visibilidade ao sofrimento desses profissionais que, no exercício da escuta e do cuidado, foram silenciando suas dores pela urgência de ter que lidar com um cenário tão desafiador, sem precedentes, no qual todos nós nos vimos confinados.

Esse é um exercício da nossa empatia, gratidão e compromisso com a condição humana, com a crueldade dos Discursos Dominantes que, muitas vezes, são reproduzidos e nos levam a adoecer. Nos levam acreditar que foi uma escolha pessoal, quando, na realidade, é uma ação que encontra-se costurada em uma cenário sócio-cultural.

Discursos Dominantes

Talvez aqui precisemos parar para falar sobre esses Discursos Dominantes, para entender como cada um de nós, inclusive enquanto profissionais de saúde, é construído com mensagens, valores, normas, determinações e deliberações. E como, graças a isso, acabamos por nos responsabilizar por “nossas escolhas”.

Frisamos as “nossas escolhas” e convidamos cada um em particular a analisar qual parcela do “nosso” representa minha forma singular de ser, agir, sentir e lidar com o mundo em distintos cenários. E ao fazer essa reflexão compreendemos que não são nem “nossas”, nem sequer uma “escolha”.

Um dos Discursos Dominantes mais cruéis com o qual convivemos é o da supremacia do individual frente ao coletivo. O indivíduo se sobressai frente à sua comunidade. Aquele que se esforça, “sozinho”, alcança. Somos INDIVIDUALMENTE responsáveis pelos nossos atos.

Frente a esse Discurso, o que pode ter sido considerado como uma mensagem de empoderamento, força e destreza, talvez esconda a face da solidão, da pressão sobre o sujeito, do abandono do coletivo, da culpa, da ansiedade por superar, vencer e construir uma história de sucesso, de pertencimento. O Discurso individualista invisibiliza e absolve o coletivo e deixa recair sobre o sujeito o peso e a responsabilidade. 

A função de “eleger vidas” na Pandemia

Em meio às vertigens da Pandemia, fomos arrebatados por uma notícia estarrecedora do suicídio de colegas psicólogas hospitalares que trabalharam com vítimas da COVID-19. Até então, para nós, o risco de vida ou morte estava naqueles infectados pelo vírus e nos profissionais de saúde, na linha de frente do combate ao corona com uma margem de vulnerabilidade maior, os médicos e enfermeiros.

Além disso, imaginamos que as mortes fossem por infecção e não por desespero. Até então, as margens em que o desespero aparecia eram aquelas de uma situação emergencial com decisões de grande porte a serem tomadas numa velocidade que certamente atropela o nosso raciocínio, o nosso bom senso, a nossa prudência, mas nunca achamos que pudesse atropelar a nossa moral.

Falamos sobre a infecção da nossa moral quando nos referimos a médicos que, na condição de cientistas e técnicos do assunto sobre a doença, são convocados a assumir uma nova função dentro do cenário mundial de Pandemia, a função de eleger vidas, de decidir sobre qual ser humano escolher para tentar salvar. Que dimensão humana é violada quando nos deparamos com a realidade de termos que escolher quem merece viver?

Essa transposição de responsabilidade do Estado para um profissional da área de saúde, no caso o médico, primeiramente, gera prejuízos de ordem emocional incalculáveis, na medida em que alguns deles começam a se ver como assassinos. A que ponto chegamos quando alguém que, até então, se via como um ser que trabalha para salvar vidas passa a se considerar, desesperadamente, como aquele capaz de tirar vidas?

Essas duas realidades nos fizeram pausar para reflexões de ordem mais profunda sobre os bastidores de profissionais de saúde no cenário da Pandemia.

Heróis também sofrem os efeitos da Pandemia

Os nossos juramentos de profissão estão nos fazendo pagar um preço muito alto. Novamente, seguidos por uma ordem moral, nos oferecemos como cuidadores daqueles que necessitam de nosso aparato técnico e emocional e, enquanto profissionais de saúde, muitos de nós não têm a coragem de reagir de forma a se negar, por medo ou esgotamento, a prestar atendimento à população em nome desse juramento. 

Essa é uma postura honrosa a qual devemos reverenciar. Porém, quando alguém, diante de tamanho sofrimento e urgência, no contexto da pandemia, se excede nos limites e nas suas possibilidades, resultando no estresse pós traumático que faz com que, numa atitude de desespero, cometa suicídio, não estamos mais diante de um código de ética ou de moral, nem de um juramento, mas sim diante de uma atitude desesperada de onipotência que resulta na própria morte. Para onde somos arrastados quando somos os únicos e últimos espectadores de uma partida sufocante e solitária?

A partir desse questionamento e da identificação com a dor de nossos colegas, psicólogos, somos levados a acolher o silêncio dos pacientes em seus minutos finais. O silêncio que deflagra toda vulnerabilidade, medo e pequenez da nossa condição humana. Somos profissionais espectadores dessas histórias, desse tormento que nos induz a vivenciar revisões de nós mesmos, de nossas vidas e do sistema do qual fazemos parte, muitas vezes impregnadas de condições insuportáveis.

Nesse momento, nos deparamos com um novo silêncio, o silêncio que nos é imposto, seja por conta do sigilo exigido por nossa profissão, seja pela dificuldade de colocar em palavras cenários inéditos de uma realidade, até então, inominável.

Quando nossos sentimentos e reflexões não encontram via de expressão e escoamento, perdem a condição de serem significados e redimensionados. Permitem apenas que uma dor brutal, corrosiva e devastadora se instale, minando as possibilidades de nos conectar com a esperança e o cuidado necessários à preservação da vida.

A imagem distorcida e idealizada de transformar esses profissionais em heróis, com direito a capas e máscaras, pode representar uma armadilha que distorce uma condição humana acompanhada de sofrimentos, fragilidades, vulnerabilidades e limites desrespeitados.

Há espaço para que os heróis sucumbam? Para poderem compartilhar suas dores, seus medos, seus dilemasComo assumir para si e para o outro em um cenário já tão caótico que ele, jurando prestar cuidados, também se abate com os extremos da Pandemia, comprometendo sua sanidade, seus sentimentos, muitas vezes, contraditórios, que não encontram espaço de expressão?

São vozes oprimidas de um herói enrijecido que resiste sucumbir ao absurdo. Como narrar e compartilhar as dores vivenciadas nos hospitais ou nos atendimentos? Como lidar com os óbitos que se acumulam e, de tão rotineiros, alteram os parâmetros da perplexidade?

Certamente nós não sabemos. Enquanto profissionais capacitados para lidar com o luto, a raiva, a angústia, o desespero, o sofrimento psíquico, estamos também sendo convidados a vivê-los. A situação tão particular experienciada nesse contexto de pandemia e crise, é que estamos todos sofrendo os seus impactos, os mesmos impactos. Todos perdemos o convívio com nossos afetos, a nossa liberdade, os nossos recursos, o nosso cotidiano e suas tão preciosas pausas há tempos desprezadas. Será que já havíamos refletido sobre os significados daquelas pausas de cotidianidade? Improvável. 

Protocolos não dão conta de representar a realidade vivida

No atual cenário cada um de nós, profissionais da saúde mental, está administrando nossos processos de luto, alguns entorpecidos, outros, desesperados. Todos oscilando entre ações de enfrentamento orientadas às perdas e ações de enfrentamento orientadas à restauração (essas em escala muito menor já que a nossa própria visão de futuro foi comprometida).

Somos atingidos pelo mesmo tsunami, estamos bravamente ofertando nossa escuta amorosa e genuína àqueles que atendemos enquanto nos livramos dos escombros que caíram sobre nós. A situação é inusitada e, portanto, de grande complexidade. 

Protocolos existentes não dão conta de responder ou representar essa realidade vivida em tempos de Corona. O primeiro princípio descrito no Código de Ética Profissional do Psicólogo defende que todo o “trabalho se baseará no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano […], (p. 7)”.

Todo código linguaja acerca de prerrogativas éticas e coloca em evidência a existência de padrões de conduta coletivos, eleitos para orientar o indivíduo. Mas, e quando o código não alcança a narrativa de um novo tempo? De uma história inédita ainda sem narrador para contextualizar àqueles que a vivem? Como honrar princípios éticos num cenário onde a moral foi desamparada?

Enredo em tempos de Corona não tem script, nem prefácio. Vivemos em um eterno gerúndio, buscando referências sólidas de condutas adequadas para responder a um momento onde as incertezas vigoram, onde só encontramos notas de rodapé com discursos amparados por certezas do dia, daquele dia, se tivermos sorte. Como, então, ficamos enquanto profissionais de saúde cuja missão é cuidar, ofertando segurança emocional?

Estamos todos no limbo, no vácuo de uma história sem narrador. E isso fissura a sensação de pertencimento, de se reconhecer ocupando um lugar conhecido, com regras estabelecidas, a partir do qual costuramos cada retalho de nossa identidade. Os profissionais de saúde foram desalojados dos lugares conhecidos de pertencimento, os quais instauravam códigos éticos de condutas esperadas. 

Além de uma ética asfixiada pela chegada arrebatadora das contingências da Pandemia, a moral também padece, pede socorro, e desloca o profissional para uma dicotomia tirana de escolhas polarizadas entre vida e morte, vivos e possíveis falecidos. Ficamos, dessa forma, ao lado da soberania, quando somos convocados a protagonizar decisões polarizadas e da covardia. Nesse cenário não há lugar de pertencimento, aqui só o que sobrevive é a dor, o pranto e os Santos.

A condição individual e coletiva frente à Pandemia

Atormentados por tanto desastre, devemos ficar atentos para algumas versões que possam travestir esses sentimentos, como a ansiedade, insônia, estresse, depressão, burnout e o estresse pós-traumático. O transtorno de estresse pós-traumático (TSPT) é um tipo de transtorno de ansiedade que pode se desenvolver em pessoas que vivenciaram um evento traumático.

Essa condição causa sofrimento intenso e prejuízos em diversas áreas da vida, como no trabalho, em relacionamentos e, em casos de suicídio, numa angústia profunda consigo mesmo. A que tipo de questionamento eu me submeto revisando a situação traumática pela qual passei onde, porventura, possa, de alguma maneira, me sentir responsável por decisões e comportamentos aos quais fui forçado a adotar diante da emergência dos fatos? 

A morte de muitos de nossos colegas de profissão, profissionais de saúde e de todas aquelas que ainda podem estar por vir nos mais diferentes países não é culpa de ninguém e, ao mesmo tempo, é responsabilidade de todos nós. Pois cada um pode dar a sua parcela de contribuição no movimento planetário que nos convoca a uma atitude de colaboração, de solidariedade e de uma compaixão que transcende os limites que, até então, estávamos acostumados a nos doar.

Um dos questionamentos que levantamos é relativo a um mergulho profundo sobre a postura singular de cada um de nós diante do isolamento social e da realidade da COVID-19. Nas atitudes que adotamos em prol de um outro, um outro que pode ser amigo, familiar, profissional de saúde, irmão fraterno que se expõe para salvar vidas, enquanto eu, particularmente, possa estar me dando o direito de uma atitude individualista e irresponsável me autorizando a adotar comportamentos considerados inoportunos e proibitivos diante do cenário atual.

Aqui nos referimos a todos aqueles que se autorizam, levianamente, a desrespeitar o isolamento social em nome de um simples e indigesto ato que possa comprometer uma população. Aqueles que continuam sobre o prisma individualista que privilegia os benefícios próprios, mesmo que às custas da dor, do sofrimento e, quem sabe, da vida do seu próximo. Preocupante, estarrecedor. 

Desde que o mundo é mundo sabemos que seres como esses existem, fazem parte de uma corte perversa e frágil da humanidade que necessita de restauração. Mas será que uma Pandemia como esta não é suficiente para abrir espaço de reflexão sobre como posso ser alguém melhor? Como posso usar as vestes da solidariedade e da colaboração, abraçando as vulnerabilidades, tanto minhas quanto do meu próximo, ainda que eu não o conheça?

O outro, ainda que próximo, está sendo sentido como distante, alheio, despersonalizado. Os números substituem os nomes, parentescos, profissões, sonhos daqueles que perdemos para que não gritemos, para que não desabemos em prantos inconsoláveis, para que não questionemos a nossa humanidade e o quanto a “necessidade” de me atender se dá às custas de vidas.

Essa realidade de entorpecimento emocional nos impossibilita de nos vestir de empatia, solidariedade, compaixão. Quando não vemos a realidade a nosso redor, não nos entendemos partícipes e colaboradores. Quando reduzimos as pessoas a números, não sofremos por elas, não nos afligimos por suas dores, não refletimos sobre como estamos igualmente vulneráveis. Nos mantemos na invisibilidade sórdida e cruel, sem rosto, que me protege de possíveis protestos contra meus próprios atos.

Estamos em um cenário em que as vidas estão sendo descartadas e mortes se reduzem a números estatísticos. Os rituais foram abolidos deixando o vazio insustentável de um luto não elaborado. Quando poderemos nos despedir de nossos entes queridos que se foram? Como nos reconfortaremos sem o afago uns dos outros? Sem os abraços que nos embalavam no conforto de uma esperança de continuidade? A revolta nos faz refém, a incompreensão nos ensurdece e o medo nos emudece.

Refratamos o aconchego da sabedoria que se encontra num hiato; é salubre permanecer na ignorância, nunca a desejamos tanto. Porque com ela não nos confrontamos com nossas fraquezas, nossos limites, e impossibilidades. Como, então, ficamos enquanto profissionais de saúde? Mais uma pergunta cuja resposta se apresenta no gerúndio. O que já sabemos, por ora, é que muitos de nós estão presos na toca do invasor, à mercê de sua agressão. Somos mais uma das vítimas desse invasor. 

Mas a esperança é a tônica que nos faz permanecer. Permanecer como mensageiros de um futuro incerto. Um futuro que clama estar respaldado no acervo de nossas melhores memórias, nas lembranças com as quais possamos flertar pois nos convidam a oportunidade de uma restauração emocional. Talvez, talvez… seja um caminho para repararmos as dores, em um diálogo com as vozes que nos aproximam de quem já fomos um dia e, depois de atravessar essa Pandemia, aquelas que comporão um novo ser.

*Este artigo apresenta as ideias de suas autoras e não refletem, necessariamente, a opinião da Sanar.

 

[1] Psicóloga, Mestra em Ciências da Família pela UcSal. Diretora do Instituto Humanitas – Pesquisa e Intervenções em Sistemas Humanos, Salvador/ Brasil.

[2] Psicóloga, Especialista em Terapia individual, Conjugal e familiar Sistêmica; Especialista em Psicologia Comportamental e em Desenvolvimento Infantil; Especialista em Avaliação Psicológica. Supervisora clínica e docente do Instituto Humanitas – Pesquisa e Intervenções em Sistemas Humanos, Salvador/ Brasil.

[3] Psicóloga, Especialista em Terapia Familiar Sistêmica. Supervisora clínica e docente do Instituto Humanitas – Pesquisa e Intervenções em Sistemas Humanos, Salvador/ Brasil.

[4] Psicóloga, Doutora em Psicologia da Educação, Universidade de Barcelona/ Espanha. Supervisora clínica e docente do Instituto Humanitas – Pesquisa e Intervenções em Sistemas Humanos, Salvador/ Brasil


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