Nos bastidores do hospital: e quando a família se torna o paciente? |Colunista

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O adoecimento é uma ruptura na história do sujeito. Uma vida que seguia seu curso normal se vê, inesperadamente, diante de um evento doloroso, assustador e até mesmo sombrio: a doença. Sonhos são por ela adiados, planos são interrompidos, uma rotina é quebrada. Adoecer é verbo, é ação que irrompe sobre uma vida, mas que afeta também outras pessoas. É sobre isso que eu quero falar.

Quem já enfrentou uma enfermidade sabe como é angustiante vivenciar as incertezas da espera por um diagnóstico ou as dificuldades de um possível tratamento. Quando isso se estende para uma internação hospitalar, tais inquietações são ainda maiores. Estar em um espaço novo e desafiador, depender de intervenções de uma equipe desconhecida e aguardar o momento da alta hospitalar desperta muitas emoções e sentimentos no paciente, e é importante que ele não esteja sozinho.

Eu quero te fazer um pedido agora: imagine por um instante que você está internado em um hospital por algumas semanas e sem ter contato com ninguém conhecido. Como você se sente? O que se passa pela sua cabeça? Com quais emoções você está tendo que lidar? É difícil se ver nesta situação, não é verdade?! É por isso que quando um paciente é internado há um importante elemento que também precisa ser agregado a essa nova dinâmica: sua rede de apoio e suporte social.

Suporte social é o nome dado àquela rede essencial na promoção da saúde e reabilitação dos indivíduos, que pode ser formada por família, amigos, igrejas, grupos de pessoas que partilham a mesma condição, instituições de saúde etc (RODRIGUES, 2015). É a função exercida por aqueles que têm uma identificação ou vínculo afetivo com o paciente e que lhe ajudam a enfrentar o adoecimento de forma ativa, compondo uma rede essencial de amparo e auxílio. Dentre todos que podem ter a função de suporte social, nós podemos destacar a principal: a família.

Organizada em suas próprias singularidades, a família, de modo geral, é um espaço central de amadurecimento e socialização, sendo também participante no desenvolvimento emocional dos seus membros (PEREIRA NETO; RAMOS; SILVEIRA, 2016). Logo, é na família que se tem as bases e as raízes afetivas que podem dar sustentação para o enfrentamento e superação dos problemas.

Por outro lado, é importante lembrar que da mesma forma que afeta, a família também é afetada pelo que acontece entre seus membros, pois o que existe neste espaço é uma relação de interdependência. Sendo assim, não é difícil entender que quando um membro da família adoece ela também será impactada.

Você imagina as repercussões de um adoecimento na família? Como lidar com tal situação? O que a Psicologia tem a ver com isso? Continue comigo para descobrir.

A FAMÍLIA DO PACIENTE HOSPITALIZADO

Se você chegou até aqui nesta leitura, provavelmente está se perguntando quais os impactos que uma doença pode ter na família. Pois bem, se considerarmos que o adoecimento é um fenômeno subjetivo que é experimentado de formas diferentes pelas pessoas (LUSTOSA, 2007), não podemos definir suas consequências em todas as famílias. Em contrapartida, sabendo que culturalmente nós temos saberes compartilhados, podemos dizer que situações de crise como essa nos revelam desafios importantes que podem sim ser demarcados, concorda?

O primeiro princípio que podemos identificar é que a doença gera desorganização ao promover a interrupção do previsto (LUSTOSA, 2007) e permitir que elementos de caos se instalem. A casa é trocada pelo hospital; o contato agora tem hora para acontecer; a comunicação é circundada por mediadores, e diante disso a família precisará se adaptar aos novos papeis e hábitos de vida (ALMEIDA et al., 2009). Ela é confrontada com o inesperado e precisa responder a ele.

Aliado a isso, a falta de informações precisas e a adequação às normas e rotinas hospitalares se configuram como um segundo desafio para a família (LUSTOSA, 2007; BEUTER et al., 2012). Não bastasse tudo ser novo, se adequar parece difícil demais porque cada coisa tem hora e forma exatas para acontecer: o boletim médico, os banhos, as refeições, as visitas. Assim, sentimentos e emoções brotam com força no âmago da família, intensificando o sofrimento vivenciado.

O terceiro ponto observado, portanto, é a intensidade dos sentimentos experimentados e suas consequências. Medo, ansiedade, insegurança, preocupação, tristeza, impotência e um misto de emoções passam a fazer parte do cotidiano dos familiares (ALMEIDA et al., 2009; BEUTER et al., 2012) que tentam enfrentar a realidade que parece difícil demais.

Diante desse contexto, os familiares sentem-se desamparados (FUMIS, 2016). A dor, a angústia e o desespero muitas vezes tomam conta e eles se veem divididos entre cuidar do paciente e lidar com o próprio sofrimento. Não raramente, eles anulam a própria dor para acolher a dor do outro, apesar de muitas vezes também precisarem de cuidado. O que fazer?

QUANDO A FAMÍLIA SE TORNA PACIENTE

O hospital não é um espaço preparado para receber a família. Sua organização ao longo do tempo se deu com o objetivo de comportar apenas duas categorias: o paciente e a equipe de saúde.

Apesar de muitas e importantes mudanças terem acontecido nas últimas décadas, inclusive no Brasil, a família ainda sofre os efeitos de um “não-lugar” no contexto hospitalar. Se o paciente está ali para ser cuidado e a equipe é quem detém o saber para ofertar esse cuidado, o que exatamente cabe à família? Vamos pensar juntos(as)…

Embora não sofram fisicamente os efeitos do adoecimento, os familiares estão sujeitos às consequências psicoemocionais de todo esse processo. Eles se deparam com dificuldades no enfrentamento da enfermidade, vivenciando situações e sentimentos estressores que atrapalham não só a elaboração de estratégias para lidar com esse momento, como também dificultam a tomada de decisão (LUSTOSA, 2007).

É reconhecendo este lugar que a família ocupa que nós não podemos desconsiderar uma constatação relevante: às vezes, a família se torna o paciente. Mas como assim? Bem, da mesma maneira que a equipe se volta para cuidar das demandas da saúde física, muitas vezes será necessário que esta equipe se atente para as demandas dos familiares que acompanham o paciente. Eles também precisam de atenção, acolhimento, e suporte que lhe permitam vivenciar o momento atual da forma mais funcional possível.

Dizer que, no hospital, a família se torna um paciente não é atribuir aos mesmos uma posição passiva, mas auxiliá-los a fim de mostrar-lhes que justamente por estarem tão ativos, imersos e tomados pelo adoecimento do paciente é que eles precisam ser cuidados.

Para a família, que todo o desejo agora se desdobra para a recuperação do seu ente querido, talvez seja difícil reconhecer tal necessidade e, mais do que isso, é quase impossível aceitar a si mesma como um paciente. Contraditoriamente, é nesse momento que ela mais precisará de ajuda e necessitará transpor as defesas do seu próprio ego para dar espaço para o sentir (LUSTOSA, 2007). É aqui que uma assistência efetiva deverá ser prestada à família.

Chegar a este ponto, contudo, é um desafio e requer muito investimento. Não basta dizer à família que “vai ficar tudo bem”. Sim, motivar, às vezes, é necessário, assim como a fé também pode trazer um conforto essencial, mas a assistência não pode se resumir a isso. Cuidar da família é acolher o seu sofrimento e lhe dar espaço para ser e sentir o que quiser, sem reservas ou julgamentos – e há apenas um(a) profissional habilitado teórica e tecnicamente para fazer isso: o(a) psicólogo(a).

O PAPEL DA PSICOLOGIA HOSPITALAR

A Psicologia ingressou no hospital com a missão de olhar para o paciente de forma integral e não ceder às pressões de reduzi-lo ao sintoma ou à doença. Em um contexto dominado por uma Medicina que historicamente separa o psíquico do somático, a Psicologia vem inserir uma nova perspectiva que busca resgatar a subjetividade do indivíduo, não apenas do paciente.

Partindo dessa ideia, a Psicologia consegue utilizar os seus saberes e técnicas para intervir sobre as repercussões advindas do processo de adoecimento. Assim, como uma ciência complexa e uma profissão abrangente, ela se estrutura e se especializa no contexto hospitalar, fazendo surgir um campo inovador que vai se ater não só aos cuidados com o paciente, mas também voltará seu olhar para a família e para a equipe de saúde. Firma-se, desse modo, a Psicologia Hospitalar.

Sob este olhar ampliado, a Psicologia Hospitalar baseia-se na premissa de entender e tratar os aspectos psicológicos que existem em torno do adoecimento (SIMONETTI, 2004) e estar atenta àquilo que é renegado por tantas esferas, como é o caso da família. Mas como ela faz isso?

Bem, a família do paciente hospitalizado está em franco sofrimento e é o(a) psicólogo(a) hospitalar que pode ajudá-la. Através de uma aproximação empática, a atuação deste profissional poderá auxiliá-la a reencontrar o próprio eixo e se reorganizar diante do momento atual (LUSTOSA, 2007). Este(a) profissional deve realizar o acolhimento da família e ajudá-la a entender a situação vivida e diminuir seu sofrimento (FUMIS, 2016). Para isso, precisará estar atento às demandas emocionais da mesma, de modo a respondê-las e atendê-las (AZEVÊDO; CREPALDI, 2016), oferecendo-lhe um suporte psicoemocional efetivo.

Sendo assim, embora o(a) psicólogo(a) não possa intervir sobre a doença em si, sua atuação pode se dar na relação do paciente com seu sintoma (SIMONETTI, 2004), e na relação da família com o adoecimento. Oferecer a própria presença e entregar uma escuta ativa à família é permitir que a angústia dela tenha um lugar através da fala para fluir e esvaziar a dor. Talvez este seja o principal papel do(a) psicólogo(a) hospitalar perante a família: emprestar sua escuta para fazer escoar o
sofrimento do outro.

Cabe ainda a este(a) profissional orientar a família naquilo que se faz pertinente e ajudá-la a compreender as informações passadas pela equipe, desde dados sobre o boletim médico até questões sobre normas e rotinas da unidade, facilitando a comunicação entre eles (LUSTOSA, 2007). Isso é importante porque em muitos momentos receber um diagnóstico difícil, um prognóstico reservado ou ainda uma notícia de óbito pode desestabilizá-la ainda mais. Logo, um profissional que possa assisti-la nesse processo de travessia é fundamental, não é verdade?

Por fim, frente à hospitalização de um paciente, o(a) psicólogo(a) hospitalar é aquele(a) que pode auxiliar a família no enfrentamento da dor e dos medos decorrentes da doença (LUSTOSA, 2007; AZEVÊDO; CREPALDI, 2016), intervindo na construção de estratégias de enfrentamento adaptativas para o momento atual. Não cabe ao psicólogo(a) dizer à família que eles vão superar o caos, mas cabe caminhar ao seu lado para que ela mesma consiga se reajustar e encontrar sua própria saída.

FINALIZANDO…

Conforme você pôde notar, o adoecimento e a hospitalização promovem consequências relevantes sobre a vida do paciente e de sua família. Nessa perspectiva, os cuidados precisam ser dispensados a ambos, tendo em vista que tanto a família compõe um suporte social importante para o paciente, quanto o bem-estar deste repercute positivamente sobre sua família.

Desse modo, cuidar da família do paciente hospitalizado não deve ser uma exceção, mas uma regra, um fator que pode acarretar inúmeros benefícios e favorecer até mesmo uma melhor integração da tríade paciente-família-equipe. Para tanto, o(a) psicólogo(a) hospitalar é o(a) profissional ideal para intervir em meio a esta demanda e por isso sua atuação precisa ser não apenas valorizada, mas continuamente aperfeiçoada.

A Psicologia Hospitalar não é um fim em si mesma, mas uma ponte. Então, que nós, psicólogos(as) hospitalares, saibamos fazê-la avançar em direção a uma assistência cada vez mais integral e humanizada.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A. S. et al. Sentimentos dos familiares em relação ao paciente internado na unidade de terapia intensiva. Rev Bras Enferm, v.62, n.6, p.844-849, nov-dez 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/reben/v62n6/a07v62n6.pdf. Acesso em 26 jun. 2020.

AZEVÊDO, A. V. dos S.; CREPALDI, M. A. A Psicologia no hospital geral: aspectos históricos, conceituais e práticos. Estudos de Psicologia, v.33, n.4, p.573-585, out- dez. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/estpsi/v33n4/0103-166X-estpsi-33-04-00573.pdf. Acesso em: 27 jun. 2020.

BEUTER, M. et al. Sentimentos de familiares acompanhantes de adultos face ao processo de hospitalização. Esc Anna Nery (impr.), v.16, n.1, p.134-140, jan-mar. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ean/v16n1/v16n1a18.pdf. Acesso em: 27 jun. 2020.

FUMIS, R. R. L. A família do paciente crítico. In: FUMIS, R. R. L. (ed.) UTI humanizada: cuidados com o paciente, a família e a equipe. São Paulo: Atheneu Editora, 2016.

LUSTOSA, M. A. A Família do Paciente Internado. Rev. SBPH, v.10, n.1, jun. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v10n1/v10n1a02.pdf. Acesso em: 26 jun. 2020.

PEREIRA NETO, E. F.; RAMOS, M. Z.; SILVEIRA, E. M. C. Configurações familiares e implicações para o trabalho em saúde da criança em nível hospitalar. Physis – Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.26, n.3, p.961-979, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/physis/v26n3/0103-7331-physis-26-03-00961.pdf. Acesso em:
28 jun. 2020.

RODRIGUES, S. R. A família como suporte à reabilitação da pessoa com deficiência: Paraplégicos e tetraplégicos. Dissertação (Mestrado). Escola Superior de Enfermagem do Porto. Porto, 2015. Disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/10775/1/disserta%C3%A7%C3%A3o%20-%20Sara%20Rodrigues.pdf. Acesso em: 28 jun. 2020.

SIMONETTI, A. Manual de Psicologia Hospitalar: o mapa da doença. Casa do Psicólogo, 2004.