A cinemática reciprocante na endodontia

Os objetivos mecânicos e biológicos do tratamento endodôntico são a modelagem e limpeza do sistema de canais radiculares (SCR), a partir da remoção de resíduos de polpa vital e/ou necrosada, desorganização do biofilme bacteriano, facilitando a desinfecção do canal através da irrigação e fornecendo uma conformação adequada para a vedação subsequente.

Sendo o preparo mecânico parte essencial do tratamento endodôntico, várias abordagens foram propostas, com o objetivo de melhorar a forma do canal, a eficiência de corte, flexibilidade e segurança do instrumento. Surgem os novos sistemas de Níquel-Titânio (NiTi) e diferentes cinemáticas de ativação dos mesmos.

Para a realização do tratamento endodôntico mecanizado há dois tipos de movimentos ou cinemática: rotatório e reciprocante. E, qual a diferença essencial entre eles? O rotário possui rotação contínua em 360° no sentido anti-horário, enquanto o reciprocante apresenta um movimento oscilatório assimétrico, no qual a lima gira 150º no sentido anti-horário, cortando a dentina e logo depois, na direção oposta, gira 30º no sentido horário para recolher e soltar a dentina. Consequentemente, esses instrumentos completam uma rotação completa ao longo de vários ciclos de movimentos alternados, podendo ser definido como “reciprocidade parcial com efeito rotativo”.

A introdução da cinemática reciprocante aliada ao desenvolvimento das limas de NiTi para o preparo mecanizado do SCR representa uma das aplicações tecnológicas mais recentes da Endodontia. Desde seu lançamento comercial em 2011, os sistemas reciprocantes tem despertado grande interesse na prática clínica, além de ser tema recorrente em embates científicos e filosóficos da comunidade acadêmica.

Atualmente, existe uma base sólida de evidências científicas acerca do proveito do movimento reciprocante em relação ao movimento rotatório, demonstrando ser seguro e eficaz no preparo de canais radiculares curvos, reduzindo a fadiga cíclica, o estresse torcional e a hora de trabalho. Os sistemas Reciproc (VDW, Munique, Alemanha) e WaveOne (Dentsply Maillefer, Ballaigues, Suíça) são os principais exemplos de sistemas para preparação de canais radiculares usando movimento reciprocante. Ambos os instrumentos são fabricados em liga M-Wire.

Os instrumentos M-Wire são produzidos usando um procedimento termomecânico desenvolvido com o objetivo de produzir um liga superelástica de NiTi, otimizando o comportamento da microestrutura e transformação da liga tradicional de NiTi. O processo de fabricação do M-Wire pode substancialmente aumentar a flexibilidade e a resistência mecânica em comparação com a liga de NiTi convencional.

As limas WaveOne® Gold (DENTSPLY-Sirona, Ballaigues, Suíça) – uma nova geração do sistema WaveOne – são instrumentos de uso único e tem como destaque a otimização dos diâmetros apicais, conicidade e secção transversal para garantir segurança, eficiência e flexibilidade à lima.

A WaveOne® Gold é mais resistente à fadiga cíclica quando comparada com o NiTi comum. Devido a sua funcionalidade elas apresentam formato ligeiramente curvo, de forma com que possa se moldar e seguir o trajeto de acordo com a anatomia do canal radicular (Dentsply, 2011). Esse sistema é confeccionada em NiTi com tecnologia e tratamento térmico e coloração Gold devido à espessura da camada de óxido de titânio, possuindo quatro diferentes dimensões: 20.07, 25.07, 35.06 e 45.05.

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O sistema Reciproc (VDW, Munique, Alemanha) é fabricado a partir de uma liga de níquel-titânio chamada M-Wire. Durante a fabricação desses instrumentos, a liga passa por um tratamento térmico que confere maior flexibilidade e resistência à fadiga cíclica. O sistema Reciproc consiste em instrumentos com tamanho 25.08,40.06 e 50.05 nos primeiros 3 mm com uma seção transversal em forma de “S”:

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Fonte: https://www.vdw-dental.com/en/products/detail/reciproc-blue/

Essas limas únicas em movimento recíproco representam uma solução conveniente para facilitar o tratamento do canal radicular. De fato, foi demonstrado que uma única lima, girando em ângulos desiguais é quatro vezes mais seguro e quase três vezes mais rápido que várias limas rotatórias para alcançar a mesma forma final.

Os dois sistemas de instrumentos de “uso único”, onde um único instrumento é utilizado para preparar e modelar o canal radicular, mesmo em canais curvos ou atrésicos, não necessitando de um pré-alargamento antes da instrumentação, de acordo com a literatura, indicando menor tempo de trabalho, menor curva de aprendizado, redução do número de instrumentos e maior segurança
em relação a fratura.

O bom exemplo é o instrumento M-Wire Reciproc R25 (VDW, Munique, Alemanha), que geralmente consegue avançar suavemente em direção ao ápice sem necessidade de glide path. Em função do movimento recíproco per se, o instrumento tende a seguir o caminho do canal naturalmente existente até o ápice.

Atualmente, existem evidências in vitro e in vivo mostrando que mais de 90% dos canais radiculares padrão podem ser preparados com o instrumento M-Wire Reciproc R25 sem nenhum caminho de planeio anterior. Por esses motivos, o fabricante de Reciproc não recomenda mais estritamente a preparação do caminho de planagem antes de seu uso.

O design transversal em "S" pode desempenhar um papel adicional, fornecendo grande capacidade de corte a este instrumento (Bürklein et al. 2012, Plotino et al. no prelo). Além disso, o uso de apenas uma lima NiTi em reciprocidade para preparar todo o canal radicular, conforme fornecido pela técnica Reciproc, pode reduzir o acúmulo de fadiga do metal, custos e evitar infecções cruzadas (Shen et al. 2009d, DeDeus et al. 2010).

Durante estudo conduzido por Plotino et al., 2012 foi verificado que as limas Reciproc® apresentaram maior resistência à fadiga cíclica do que as limas WaveOne® Gold.

Com relação à extrusão de debris, Xavier et al, 2014 concluiu que o sistema WaveOne estava associado a menos extrusão de debris que o sistema Reciproc. Já Mendonça et al, 2019 concluiu que os dois sistemas provocaram níveis semelhantes de extursçao de debris.

Portanto, o sucesso do tratamento endodôntico está condicionado à correta e harmoniosa execução de todas as etapas do preparo que exigem do profissional conhecimentos biológicos e experiência clínica, bem como o constante acompanhamento da evolução da especialidade a fim de estabelecer a melhor abordagem e instrumentos a serem utilizados, baseando todas as tomadas de decisões em evidências científicas, beneficiando os pacientes ao reduzir o risco de iatrogenias e acidentes, aumentando a previsibilidade do tratamento proposto.

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Referências

FEGHALI, Maya; JABBOUR, Edgard; KOYESS, Edmond; SABBAGH, Joseph. Scanning electron microscopy evaluation of debris and smear layer generated by two instruments used in reciprocating motion WaveOne Gold® and Reciproc Blue®. Australian Endodontic Journal, [s.l.], v. 45, n. 3, p. 388-393, 15 fev. 2019. Wiley.

SILVA, E et al.Torsional Fatigue Resistance of Blue-treated Reciprocating Instruments. Journal Of Endodontics, [s.l.], v. 44, n. 6, p. 1038-1041, jun. 2018. Elsevier BV.

DE-DEUS,G et al. Performance of Reciproc Blue R25 Instruments in Shaping the Canal Space without Glide Path. Journal Of Endodontics, [s.l.], v. 45, n. 2, p. 194- 198, fev. 2019. Elsevier BV..

BÜRKLEIN, Sebastian; POSCHMANN, Thomas; SCHÄFER, Edgar. Shaping Ability of Different Nickel-Titanium Systems in Simulated S-shaped Canals with and without Glide Path. Journal Of Endodontics, [s.l.], v. 40, n. 8, p. 1231-1234, ago. 2014. Elsevier BV.

PLOTINO, G., GRANDE, N., TESTARELLI, L., GAMBARINI, G., Cyclic fatigue of Reciproc and WaveOne reciprocating instruments. International Endodontic Journal. v. 45, p. 614–618, 2012.

XAVIER, F et al. Apical extrusion of debris from root canals using reciprocating files associated with two irrigation systems. International Endodontic Journal, [s.l.], v. 48, n. 7, p. 661-665, 11 set. 2014. Wiley.

MOURA, J et al. Extrusion of Debris from Curved Root Canals Instrumented up to Different Working Lengths Using Different Reciprocating Systems. Journal Of Endodontics, [s.l.], v. 45, n. 7, p. 930-934, jul. 2019. Elsevier BV.