Margareth Pandolfi – Doutora em Saúde Publica, Especialista em Educação em Saúde, Odontologia do Trabalho e Odontologia Legal
Este artigo foi inspirado na tese apresentada à Universidade de Pernambuco/UPE para a obtenção de título de Doutorado em Saúde Coletiva da Faculdade de Odontologia de Pernambuco (FOP), 2012.
INTRODUÇÃO
As agências que cuidam das políticas de segurança, saude e paz no mundo – Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial da Saúde (OMS) – encontram-se voltadas às políticas sociais e exercem importante papel na viabilização de políticas equânimes (GIL, 2006). A Conferência de Alma Ata (OMS, 1978), uma dessas ações, reafirmou a saúde como um direito fundamental. Entretanto, a influência do Modelo Biomédico – práticas fundamentalmente curativas, de alto custo, baixa resolutividade, com visão parcial da saúde e que despreza os determinantes sociais, a satisfação e as necessidades -, ainda são imperativas. No Brasil, como consequência, se observa um grave quadro epidemiológico, acesso limitado, baixa utilização e grandes diferenciais de renda na utilização dos serviços odontológicos.
Para Rodrigues (2000), os recursos humanos têm papel determinante nas transformações em saúde, exigindo reflexões e revisões das estruturas e das práticas, e por isso, há que se observar a formação, tornando emergente refletir sobre as novas políticas que integram ensino e serviço, motivadas pelo descompasso entre eles (HARTZ, 2000). Para Zanetti (2001), alguns fatores influênciam as emergências de algumas profissões ou inovações por dentro das profissões, e formação é uma delas.
Há que se destacar que o caráter técnico-científico, em detrimento do social, claramente assumido pelo paradigma flexniano, influenciou a formação médica no Brasil até a década de 70, e nos Relatórios Flexner (1910) e Giés (1926), a concepção mecanicista normalizaram o ensino médico-odontológico, e levaram à ênfase ao domínio cognitivo e instrumental. Tal paradigma de rígida concepção de mundo e negação da diversidade permitiu a separação do todo em partes e as demais dissociações daí decorrentes, sendo isso disjuntivo, quando aplicado ao mundo do trabalho e aos sistemas de saúde (NAMEN, GALAN JR. e CABREIRA, 2007); e, por isso, se faz necessário rever o habitus, a práxis e as Competências da corporação odontológica.
Ocorre que a odontologia, assim como as demais ciências da saúde, tem sido alvo de constantes críticas acerca de sua prática, caracterizada como isolada e desvinculada, pautada na individualização e especialização do trabalho, com a quase exclusividade da atuação nos aspectos clínicos e técnicos (ZANETTI, 2001). Evidências disso são as representações que o imaginário social revela: a atuação predominantemente curativa instiga na população a imagem de profissional mutilador, isolado e de trabalho ambulatorial. A estigmatização da profissão pode estar ligada a atuação restrita ao consultório. Segundo Collet et al. (2011), o que qualifica um CD é a interação de habilidades e competências referentes a um atendimento humanizado com aquelas do domínio técnico-científico.
Em um contexto de esgotamento do modelo da prática privada nos moldes tradicionais (prática liberal), e da expansão de planos privados cabe investigar como se situam os agentes com forte identidade associada à prática liberal, cujas mudanças no mercado, os atraiu ao setor público, e que exige novas habilidades cognitivas como: Ética, comunicativa, de satisfação do paciente, de abertura e incorporação de tecnologias pedagógicas e/ou psicológicas, de cuidado integral, de flexibilização dos horários e de negociação comercial, exigindo habilidades para lidar com os desafios das escolhas e ações coletivas e habilidade para a política, que deriva da habilidade para o Planejamento, Programação, Programação, Gestão e Gerência (PPGG), para a eficiência locativa e habilidade para a humanização (ZANETTI, 2001).
AS COMPETÊNCIAS DO CIRURGIÃO DENTISTA (CD)
Competência, segundo a Internacional Board of Standards for Trainning Performance and Instructon (IBSTPI) envolve conhecimento, habilidades e atitudes; é uma habilidade ou conhecimento; é a qualidade de quem e capaz de apreciar e resolver um certo assunto, coisa e/ou problema; e, a Avaliação por Competência pode ser feita com fins de identificar profissionais que precisam melhorar seus conhecimentos e habilidades em áreas específicas, identificar lacunas do conhecimento e habilidades, além avaliar o desempenho organizacional e a eficácia do serviço (KAK; BURKHALTER e COOPER, 2001).
A noção de Competência surgiu na Europa nos anos 80, e substituiu a qualificação, conceito-chave do trabalho, que corresponde à aprendizagem orientada para a ação e para avaliação de resultados. Sua adoção estruturou as Diretrizes Nacionais Curriculares (DNCs) (DELUIZ, 1996), nas quais consta que o CD deve ser […] generalista, humanista, crítico e reflexivo, para atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor técnico e científico, pautado em princípios éticos, legais e na compreensão da realidade social, cultural e econômica[…]. Devendo também apresentar competências como: Atenção à Saúde, Tomada de Decisões, Comunicação, Liderança, Administração e Gerenciamento e Educação permanente, bem como deve apresentar algumas Competências e Habilidades Específicas: […]; para buscar melhorar a percepção e providenciar soluções para os problemas de saúde bucal e áreas relacionadas e necessidades globais (BRASIL, 2003). Um currículo por competências corresponderia a um conjunto de experiências de aprendizagens concretas e práticas, focadas em atividades que se realizam nos contextos ou situações reais […] (RAMOS, 2001).
Há que se ressaltar alguns componentes das competências: […]; Habilidades Clínicas: ações (e reações), que um indivíduo executa de modo competente para alcançar uma meta. Habilidades são adquiridas por meio de treinamento em modelos anatômicos, ou usando pacientes reais; e, Atributos Pessoais ou Capacidade Pessoal – características ou qualidades de natureza pessoal. Estas incluem atitudes (valores pessoais e sociais), autocontrole e autoconfiança, somados a habilidades de comunicação, interação interpessoal e raciocínio clínico (KAK; BURKHALTER e COOPER, 2001).
Ocorre que Competências não são saberes, nem apenas um saber-fazer ou atitude, elas mobilizam, integram e orquestram recursos. As competências se constroem em formação e no caminhar do trabalho (PERRENOUD, 2000). Assim sendo, para construi-las, é necessário mobilizar Conhecimentos (saber), Habilidades (saber-fazer), Valores e Atitudes (saber-ser), e assumir de responsabilidades, ou então, ter atitude social (ZARAFIAN, 1998). Em relação às Atitudes, ressalta-se que entender os fatores psicológicos da motivação humana é uma atividade complexa, devido à alta subjetividade que envolve fatores motivacionais, pois a partir daí, a conduta de cada um é determinada pela interação de fatores, sendo estes últimos impregnados com os valores sociais e culturais.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O HABITUS E A PRÁXIS DO CIRURGIÃO DENTISTA
Para Franco e Merry (1999), a mudança no processo de trabalho e um dos maiores desafios da Odontologia, e para Rodrigues (2000), os recursos humanos têm papel fundamental nessas transformações exigindo reflexões e revisões das estruturas. Assim sendo, as críticas ao perfil do CD suscitou discussões sobre a formação (SOUZA e RONCALLI, 2007). Entretanto, as práticas do CD são ainda predominantemente de Controle de riscos e de danos (CHAVES, 2005). Garbin et al. (2018) observaram que estudantes de Odontologia tem percepcao sobre isso, e tem expectativa de mudança.
Se o habitus e práxis estão relacionados (BOURDIEU, 1996), e são compreendidos como disposições e esquemas de percepção que traduzem as características intrínsecas e relacionais de uma prática – de um estilo -, manifestado através da escolha de serviços, bens e práticas, há que se justificar porque tudo continua como era dantes. A tendência a feminilização, vínculo público/privado, formação não generalista e ainda origem em escolas privadas, advindos de famílias com renda familiar e escolaridade superiores e elevadas para os padrões médios brasileiros (CHAVES, 2005), podem ter influenciado o habitus e a práxis do CD.
A prática pode também ter incorporado o caráter marcadamente liberal e individual, característico da considerada a última das profissões liberais (CHAVES, 2005). Segundo Namem, Galan Jr. e Cabreira (2007), especialidades como Implantodontista, ortodontista, periodontistas e agora harmonizadores Orofacial reforçam a idéia de que a concepção técnica e mecanicista da saúde levaram à ênfase ao domínio cognitivo e instrumental.
Assim sendo, desenvolver as competências exigidas nas DCNs (DELUIZ, 1996; RAMOS, 2001; BRASIL, 2003) é emergente. Ao contrário, a universidade não tem proporcionado elementos técnicos que permitam aos estudantes compreender a realidade social; e, os graduando são despreparados para enfrentar a profissão. Apesar do encolhimento do campo privado e a da grande expansão do campo público, as aspirações dos alunos de Odontologia continua sendo direcionadas para o setor privado (MATTOS, 2007).
Há ainda desafios eminentes: polarização, envelhecimento e baixo acesso da população, incremento gradual da cárie e perda dentária, das doenças periodontais e de outras doenças e agravos, agravamento das doenças sistemicas e consequente uma abordagem interdisciplinar e complexidade na atenção, a atender a agenda social e perfil das demandas. Nesse contexto ficou claro as mudanças necessárias para a implementação de políticas sociais de saúde bucal passam pela formação com fins de um novo perfil e novas práticas, e passa também por todo o ambiente social onde se insere o individuo e seu trabalho (BOURDIEU, 2003); e, essas questões precisam ser avaliadas e consideradas. Devendo-se refletir sobre as novas políticas que objetivam integrar ensino e serviço, motivadas pelo descompasso entre academia e serviço (HARTZ, 2000).
Oliveira et al. (2019) verificaram que duas estruturas curriculares estão em consonância com os ideais preconizados pelas DCNs, apesar de conterem pontos que não fortalecem a formação profissional do egresso. Observou-se que ambas as matrizes apresentam potencialidades e fragilidades; na analise de 47 planos de cursos de Odontologia, feita por Fernandes et al. (2016), observou-se que a formação ainda e muito voltada para a mão, para o tecnicismo e utlização de materiais cada vez mais sofisticados. Em um novo cenário de ensino-aprendizagem proporcionado pelas DCNs há que se trabalhar com competências genéricas acrescida de competências e habilidades oriundas das ciências humanas e sociais (MORITA e KRIGER, 2006); bem como das habilidades coletivas (ZANETTI, 2001); a incluir as PPGGs.
Ressalta-se que no Art. 5 o das DCNs consta que o profissional deve desenvolver as competências de forma articuladas ao contexto social (BRASIL, 2003). Assim sendo, é emergente construir novas competências, e para isso é necessário mobilizar conhecimentos (saber), habilidades (saber-fazer), valores e atitudes (saber-ser), para um assumir de responsabilidades e atitude social (ZARAFIAN, 1998).
Consta ainda que o profissional deve desenvolver as competências a obter e eficientemente gravar informações confiáveis e avaliá-las objetivamente;? – analisar e interpretar os resultados de relevantes pesquisas experimentais, epidemiológicas (BRASIL, 2003). Para Narvai (1996), as práticas de avaliação ainda são poucos incorporadas; de caráter mais prescritivo, burocrático e polarização ainda são subsidiárias ao planejamento e a gestão; e não se constituem, ainda, em instrumento de suporte ao processo decisório.
Há que se considerar que a avaliação das competências solicita a relação intrínseca das três dimensões da avaliação que buscam resguardar as possibilidades de antever, acompanhar e analisar, ao final, os elementos, procedimentos e fatos inerentes ao processo de ensino e aprendizagem, pretendendo assegurar a proposição e implementação de todas as condições essenciais à formação e ao aperfeiçoamento (PERRENOUD, 2000).
Para transformações no campo da avaliação e para transformações processadas no contexto da atuação, exige-se profissionais competentes e habilitados para o exercício de suas funções (BRASIL, 2001b), a desenvolver um novo profissionais (KAK; BURKHALTER, e COOPER, 2001); inclusive no que se refere às habilidades coletivas, diretamente relacionada a Tomada de Decisão (PERRENOUD, 2000).
Competências são desenvolvidas por meio de atividades de Promoção de Saúde, Ações coletivas de cuidados em grupos (idosos, gestantes…), de controle social, de Educação como abordagem problematizadora e de atividades de classificação de risco, bem como do Diagnóstico precoce de câncer bucal. Para que estas transformações ocorram, as exigências são maiores que apenas as alterações nos currículos das universidades (BOURDIEU, 2003); e/ou mudança do modelo de atenção. É preciso competência para Tomada de Decisão, com prévio desenvolvimento dessas. Se faz necessária uma Agenda e Planejamento Global para a Odontologia brasileira.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2003.
_________. Estruturas, habitus e práticas. In: BOURDIEU, P. (org). Esboço de uma teoria da Prática. São Paulo: Editora Ática, 1996. p. 60–81.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais. Brasília (DF), 05 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.abeno.org.br/evol.htm. Acesso em: 02 abr. 2020.
CHAVES, S. C. L. A atenção à saúde bucal, a descentralização e o espaço social. 193 f. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Doutorado em Saúde Comunitária da Universidade Federal da Bahia – Instituto de Saúde Coletiva. Mar. 2005.
COLLET, E. L. et al. A opinião de um grupo de adultos sobre as qualidades essenciais a um cirurgião-dentista / The opinion of adults about de essential qualities to a dentist. Salusvita, v. 30, n. 3, 2011.
DELUIZ, N. A globalização econômica e os desafios à formação profissional. Boletim Técnico do SENAC, Rio de
Janeiro, v. 22, n. 2, p. 15-21, maio/ago. 1996.
FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Programa Saúde da Família: contradições de um Programa destinado à mudança do modelo tecnoassistencial para a saúde. In: Congresso da Associação Paulista de Saúde Pública, 1999. Águas de Lindóia: APSP. 1999.
HARTZ, Z. M. A. Pesquisa em avaliação da atenção básica: a necessária complementação do monitoramento. Divulgação Saúde para Debate, Londrina, n. 21, p. 29-35. 2000.
FERNANDES, D. C. et al. Curriculo de Odontologia e as Diretrizes Curriculares Nacionais. Revista Port. Saude e
Sociedade, v. 1, n. 2, p. 104-115, 2016.
GIL, C. R. R. Atenção primária, atenção básica e saúde da família: sinergias e singularidades do contexto brasileiro. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 6, jun. 2006.
KAK, N.; BURKHALTER, B.; COOPER, M. A. Measuring the competence of healthcare providers. Operations Res. Issue
Paper, Bethesda, v. 2, n. 1, p. 1-28, July 2001.
MATTOS, R. A. As agências internacionais e as políticas de saúde nos anos 90: um panorama geral da oferta de idéias.
Ciênc Saúde Coletiva, São Paulo. v. 6, p. 377-89. 2001.
MORITA, M. C.; KRIGER, L. Mudanças nos cursos de odontologia e a interação com o SUS. Revista da ABENO, Brasília, DF, v. 4, n. 1, p. 17-21, 2004.
NAMEN, F. M.; GALAN JR., J.; CABREIRA, R. D. Educação, saúde e sociedade. Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v. 9, n. 1, p. 43-55. dez. 2007.
NARVAI, P. C. Avaliação de ações de saúde bucal. In: Oficina saúde bucal no SUS, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo. Texto. São Paulo, 1996.
OLIVEIRA, L. M. L. et al. Avaliação de matrizes curriculares frente às DCN para os cursos de graduação em Odontologia /
Evaluation of curriculum norms according to the National Curriculum Guidelines for graduate studies in Dentistry. Rev. ABENO, v. 19, n.1, p. 97-105, 2019.
PERRENOUD, P. Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
RAMOS, M. N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo, Ed. Cortez, 2001.
GARBIN, C.A. S. et al. O ensino de graduação no Brasil: a perspectiva do estudante sobre aspectos curriculares da prática odontológica, Rev. ABENO, v. 18, n. 4, p. 95-102, 2018.
SOUZA, T. M. S.; RONCALLI, A. G. S. Saúde bucal no PSF: uma avaliação do modelo assistencial. Cad. Saúde pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 11, p. 2727-2739, nov. 2007.
ZANETTI, C. H. G. Odontologia: habilidades e escolhas. Trabalho Acadêmico. Brasília, 2001 (Universidade de Brasília –
UnB).
ZARAFIAN, P. A gestão da e pela competência. In: Seminário Internacional Educação Profissional, Trabalho e Competências. 1996. Rio de Janeiro, Anais…, Rio de Janeiro: SENAI/DN-CIET, 1998.