O cirurgião-dentista é um profissional de saúde fundamental no processo de detecção de casos de violência doméstica – um problema social e alarmante, presente na realidade do país. Entretanto, grande parte desses profissionais desconhece o seu papel legal ou apresenta dificuldade para identificar e notificar os casos. O objetivo desse artigo é discorrer acerca da atuação do cirurgião-dentista frente aos casos de violência doméstica, bem como a importância desse profissional em relação a este fenômeno, contribuindo para a prevenção dos agravos à saúde oriundos da violência.
O que é violência doméstica?
A violência doméstica, também conhecida como violência intrafamiliar, corresponde às agressões cometidas no contexto familiar, dentro ou fora do lar, podendo ser ocasionadas por membros que convivem ou conviveram com as vítimas – pais, mães, filhos ou parentes civis, por exemplo. As principais vítimas são: crianças e adolescentes, idosos, pessoa com deficiência e, predominantemente, mulheres. Os tipos de violência incluem: física, sexual, psicossocial, patrimonial e negligência.
De acordo com a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), a violência doméstica e familiar contra a mulher se configura como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Quais lesões o cirurgião-dentista pode observar como indicadores de violência?
O cirurgião-dentista é um dos profissionais de saúde que possui maior probabilidade de detectar lesões ocasionadas pela violência doméstica, devendo estar sempre preparado para observar os indícios. Isso ocorre devido a prevalência dos traumas decorrentes da violência física acometerem a região maxilofacial –área de atuação desse profissional-, podendo envolver comumente os tecidos moles, ósseos, periodontais e arcada dentária.
As lesões mais frequentes são contusões, lacerações dos lábios e da língua, mucosa bucal, palato (duro e mole), gengiva alveolar e freios labial e lingual; desvio de abertura bucal; presença de escaras e machucados nos cantos da boca, além de queimaduras nessa região.
Além disso, pode ocorrer também disfunção temporomandibular e dor orofacial, além de prejuízos nas funções fisiológicas do sistema estomatognático, tais como: deglutição, fala, mastigação e estética. É papel do cirurgião-dentista analisar a etiologia da lesão e realizar os procedimentos necessários perante a lei.
Caso o cirurgião-dentista reconheça indícios de violência doméstica, o que deve fazer?
Diversos estudos realizados com cirurgiões-dentistas revelaram que, a grande maioria deles – apesar de conhecer o conceito, tipos de violência doméstica, além do público mais comumente envolvido -, desconhece seu papel legal e sua importância no processo de notificação dos casos, como também os meios para realização dessa conduta.
Ao tomarem conhecimento durante o atendimento, os dentistas – bem como os demais profissionais de saúde – devem notificar os casos de violência doméstica. O descumprimento desta obrigação, segundo o artigo 66 do Decreto-Lei 3.688, de 1941, é reconhecido como contravenção penal, podendo levá-los a responder legal e eticamente pela omissão. Os artigos 245 da Lei 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e 57 da Lei 10.741, (Estatuto do Idoso) estabelecem multa aos profissionais de saúde que deixarem de comunicar à autoridade competente os casos de crimes de que tiverem conhecimento, variando de três a vinte salários mínimos no caso de crianças e adolescentes e de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais) no caso de idosos, aplicando-se o dobro em caso de reincidência, para ambos.
Ademais, vale salientar que a Lei nº 13.931, de 10 de dezembro de 2019, alterou a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, tornando obrigatoriedade para os profissionais de saúde a comunicação à autoridade policial dos casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos. O referente substitutivo entrou em vigor recentemente, 90 dias após a sua publicação.
Como efetuar a notificação?
A ferramenta utilizada pelo profissional é a notificação compulsória, produzida pelo Sistema de Informação de agravos de Notificação (SINAN). A ficha deve ser preenchida após o cirurgião-dentista identificar lesões de natureza física consideradas graves ou gravíssimas e encaminhada para a autoridade competente.
Outrossim, o Código de Ética Odontológica constitui como infração ética o não cumprimento do sigilo, sem justa causa, entre o profissional e paciente. Sem embargo, o referido Código prevê que o sigilo profissional deve ser mantido com exceção das situações nas quais a sua conservação implica diretamente na manutenção de um mal maior à vida ou à integridade do paciente. O cirurgião dentista pode então rompê-lo ao tomar conhecimento de algo que possa prejudicar algum desses direitos (Art.10, §1º, b).
Embora uma parcela dos cirurgiões-dentistas conheça seus deveres legais, assim como a ficha de notificação, muitos podem sentir receio e insegurança em notificar os casos, seja por medo de perderem pacientes ou incerteza do diagnóstico. Não obstante, grande parte dos profissionais da área odontológica ainda não possuem conhecimento ou preparação suficiente para lidar com essa situação. Dessa forma, deve-se ressaltar a importância da participação dos dentistas no processo de identificação das lesões, além dos benefícios que podem ser concedidos à vítima após a interrupção de atitudes e comportamentos violentos, proporcionando o combate à situação de violência.
CONCLUSÃO:
O artigo 5 do Código de Ética Odontológica constitui, entre deveres fundamentais dos profissionais e entidades de Odontologia, “zelar pela saúde e pela dignidade do paciente”. Dessa forma, é necessário que haja conscientização por parte do cirurgião-dentista acerca do seu papel em prol da saúde e do bem comum, para que não se crie um pensamento de obrigatoriedade somente por receio da penalidade aplicada caso haja omissão, mas sim no sentido de servir como contribuinte ao combate à violência doméstica, uma vez que a notificação dos casos, além de dimensioná-los, serve como subsídio para implantação e implementação de políticas públicas, a fim de retificar o problema.
Autora: Sandryelle Rodrigues (Colunista da Sanar, estudante do 5º semestre de Odontologia no Centro Universitário Doutor Leão Sampaio – UNILEÃO)
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