Já dizia Hipócrates há 400 anos a.C.: “aliviar a dor é uma obra divina”. Talvez a maior satisfação do Anestesiologista hoje é conseguir prevenir, aliviar e tratar a dor do paciente em um dos momentos de maior estresse psicológico e orgânico de sua vida: a cirurgia.
O médico anestesiologista tem grande responsabilidade sobre o controle da dor no período perioperatório. Atualmente sabe-se a importância deste ato por diretamente relacionar à sobrevida, tempo de internação, sequelas físicas, psicológicas e risco de cronificação da dor. A dor aguda intensa mal controlada é um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento da dor persistente pós operatória, sendo esta não tão incomum, variando de 5 a 50% dos pacientes, dependendo do tipo de cirurgia realizada.
Deve-se ressaltar os malefícios no manejo inadequado da dor nos hospitais. Além do sofrimento desnecessário, a dor subtratada pode contribuir para o distúrbio de estresse pós traumático, aumento do consumo metabólico de oxigênio, estresse cardiovascular, evolução para dor crônica, aumento da incidência de infecções através da imunossupressão, delirium, agitação, morbidade e mortalidade. Ênfase deve ser dada ao tratamento da dor também por promover tratamento com baixo custo, prevenindo complicações advindas de sua ocorrência que poderiam estar relacionadas com o aumento da morbidade e período de internação.
Reconhecer a incidência de dor pós operatória de um determinado hospital, a sua população e o seu real risco é fundamental para o planejamento e criação de estratégias para prevenção e tratamento.
Os hospitais que possuem um número expressivo de cirurgias de grande porte e complexidade possuem um maior grupo de pacientes de alto risco para desenvolvimento de dor aguda e crônica.
A dor perioperatória resulta da inflamação causada pelo trauma tecidual (incisão cirúrgica, dissecções, queimaduras) ou lesão direta de nervos (térmica por eletrocautério, compressão, transecção). O paciente sente dor pelas vias aferentes da dor, nas quais são locais de ação de vários agentes farmacológicos.
O trauma tecidual libera mediadores inflamatórios locais que podem produzir sensibilidade aumentada a estímulos na área ao redor de uma lesão (hiperalgesia) ou percepção equivocada da dor a estímulos não nocivos (alodinia) . Outros mecanismos que contribuem para a hiperalgesia e a alodinia incluem a sensibilização dos receptores periféricos da dor (hiperalgesia primária) e o aumento da excitabilidade dos neurônios do sistema nervoso central.
O controle da dor perioperatória continua sendo um desafio para todos nós, apesar do grande avanço que se tenha conseguido nas últimas décadas. As estratégias devem ser individualizadas e levar em consideração as condições clínicas, físicas, psicológicas, sociais, idade, nível de ansiedade, medo ou depressão, tipo de cirurgia, preferência pessoal e resposta terapêutica individual.
O manejo adequado da dor alivia o sofrimento, diminui a resposta inflamatória, evita efeitos colaterais, possibilita a mobilização precoce no pós operatório, reduz o tempo de internação, previne dor persistente e garante a satisfação do paciente.
O inadequado tratamento apesar de suas repercussões, é um problema permanente na prática clínica. O aumento do foco no alívio da dor pós operatória tem sido encorajado pela Joint Commission on Accreditation of Health Care Organizations, e pela American Pain Society.
Atualmente tem se discutido sobre a qualidade da assistência analgésica prestada no pós operatório. As abordagens multiprofissionais, multimodais, farmacológicas, não farmacológicas e analgesias regionais foram demonstradas em vários estudos como a estratégia de controle da dor mais efetiva. O uso de analgésicos de curta duração para dores episódicas associada a anestésicos locais em cateteres periféricos para analgesia é superior a analgesia parenteral convencional baseada em opióides fracos e analgésicos comuns.
A avaliação adequada da dor através de escalas e o registro sistemático e periódico de sua intensidade, dos analgésicos usados e seus efeitos colaterais é fundamental para que se acompanhe a evolução dos pacientes e se realizem os ajustes necessários ao tratamento. A melhoria da qualidade e a humanização do atendimento constituem hoje uma busca indispensável para qualquer hospital que deseje alcançar um bom padrão de qualidade que esteja adequado às práticas da atualidade.
Tradicionalmente, o manejo agudo da dor no período perioperatório dependia exclusivamente de medicamentos opióides para atingir os mecanismos centrais envolvidos na percepção da dor.
Atualmente a estratégia multimodal com o intuito de minimizar a necessidade de opioide tem ganhado destaque. Ela consiste na utilização de várias classes de fármacos com mecanismos de ação diferentes nas vias da dor e de variados meios de administração de analgésicos e anestésicos, como os bloqueios de nervos periféricos, diminuindo os efeitos colaterais e promovendo sinergismo na analgesia. Além dos efeitos colaterais conhecidos como náuseas, vômitos, íleo paralítico, prurido, depressão respiratória, sonolência, a prescrição excessiva de opióides tem aumentado a crise de dependência de opiáceos e mortes por abuso nos EUA e pode ser o gatilho para o seu uso a longo prazo em muitos pacientes cirúrgicos.
Atualmente também é reconhecido o efeito paradoxal do opioide. Quanto maior o seu consumo durante a anestesia, maior a chance do paciente necessitar de doses maiores no pós operatório. Isso se deve ao fato dos opioides induzirem tolerância e hiperalgesia, ou seja, doses maiores são necessárias para se adquirir o mesmo efeito e a intensidade da dor não condizente com a causa provável da dor que é o trauma cirúrgico.
O conceito de analgesia preemptiva”, ou seja, estratégias analgésicas administradas antes da incisão cirúrgica ou do estímulo podem modificar o processamento nervoso periférico e central de estímulos nocivos, reduzindo a sensibilização central, hiperalgesia e alodinia, permanece controverso.
Uma abordagem mais abrangente para a redução da dor aguda e crônica pós-operatória é o conceito de analgesia “preventiva”. O objetivo da analgesia preventiva é reduzir a sensibilização por estímulos nocivos pré-operatórios, intraoperatórios e pós-operatórios, por meio de tratamentos administrados a qualquer momento no período perioperatório. Uma estratégia preventiva é eficaz quando a dor pós-operatória ou o consumo de analgésicos é reduzido além da duração da ação do medicamento ou da técnica do tratamento.
Existem muitas técnicas analgésicas preventivas eficazes que utilizam vários agentes e intervenções farmacológicas. Eles reduzem a ativação do nociceptor (receptor da dor) bloqueando ou diminuindo a ativação do receptor e inibindo a produção ou atividade dos neurotransmissores da dor. O resultado final é uma redução no uso de opioides no pós-operatório e nos efeitos colaterais relacionados a eles.
Um anestésico local, por exemplo, pode ser injetado na proximidade da incisão cirúrgica e fornecerá analgesia preventiva. Para analgesia preventiva, analgésicos sistêmicos não opióides, como antiinflamatórios não-esteroidais (AINEs), dipirona, acetaminofeno, antidepressivos, anticonvulsivantes como gabapentina e pregabalina e alfa2 agonistas como a clonidina ou dexmedetomidina podem, em alguns casos, substituir opioides, ou podem ser efetivamente combinados com opiáceos como parte de um regime analgésico multimodal perioperatório especialmente para pacientes tolerantes a opioides. AINEs e dipirona são comumente incluídos em protocolos analgésicos multimodais, e os benefícios desses medicamentos no tratamento da dor têm sido bem descritos. A Cetamina, assim como o sulfato de magnésio, pode além de conferir sinergismo na analgesia, prevenir a hiperalgesia provocada pelos opioides ao inibir receptores (NMDA) de neurotransmissores excitatórios como o glutamato. A gabapentina ou pregabalina podem ser utilizadas inclusive no pré operatório como poupadoras de opioides ou para prevenção de dor neuropática, principalmente nas cirurgias de alto risco como amputações de membros, cirurgias de coluna, traumas de nervos periféricos, mastectomias, herniorrafias e toracotomias. A lidocaína endovenosa tanto em bolus quanto em infusão contínua também demonstrou ser efetiva ao poupar opioide, prevenir e tratar dor perioperatoria de componente misto neuropático e nociceptivo.
A dor aguda intensa pós operatória ainda continua tendo como tratamento principal o opioide forte. Mas algumas drogas como dextrocetamina e lidocaína vêm ganhando espaço como adjuvante ou até mesmo como primeira escolha para casos refratários ou com impossibilidade ou contra indicação para bloqueios periféricos.
O controle efetivo da dor pós-operatória começa bem antes do dia da cirurgia. Ter uma abordagem multimodal não significa necessariamente fazer a mesma coisa para todos os pacientes, todas as vezes. Um dos principais objetivos do manejo da dor no período perioperatório é ter o paciente confortável no despertar da anestesia.
É importante para o anestesiologista saber o quanto o procedimento cirúrgico proposto está relacionado à dor e quanto tempo este poderá durar. Assim um planejamento adequado, como por exemplo uma anestesia regional contínua controlada pelo paciente através de bombas de infusão (PCA) para cirurgias com grande potencial álgico ou uma simples anestesia local para procedimentos pequenos e ambulatoriais.
É importante também o anestesiologista e cirurgião reconhecer a possibilidade e vantagens da anestesia regional. Sempre que possível, anestesia local, bloqueios do neuroeixo, como raquianestesia ou peridural, ou bloqueios de nervos periféricos devem ser usados ??como parte do regime multimodal para controle da dor pós operatória. Em alguns casos, uma técnica analgésica ou anestésica regional fornecerá controle adequado da dor sem medicação sistêmica adicional (por exemplo, bloqueio do plexo braquial para cirurgia de membro superior). Em outros casos, opioides ou analgésicos não opioides serão necessários em adição a uma dessas modalidades.
A localização da cirurgia e os locais de dor previstos determinam quais bloqueios nervosos devem ser realizados, em que nível (is) eles devem ser realizados e se estão indicados. Atualmente vários tipos de bloqueios regionais guiados por ultrassom com ou sem a instalação de cateter têm sido descritos e realizados. Bloqueios de fáscias, compartimentais, como do plano do eretor da espinha, fáscia ilíaca, serrátil, PEC e quadrado lombar são rotineiros em alguns serviços para analgesia de tórax, abdômen e quadril. Outros bloqueios vantajosos, que visam apenas bloqueio sensitivo, preservando a motricidade do membro, estão sendo também preconizados, como PENG para quadril, IPACK e canal do adutor para joelho dentre outros.
O controle da dor pós-operatória pode ser particularmente desafiador em algumas categorias de pacientes. Para pacientes cirúrgicos com obesidade mórbida, técnicas analgésicas regionais pós operatórias sao de grande valia, quando possível, e apropriadas para minimizar o uso de opioides e sedativos, particularmente naqueles com história de apneia obstrutiva do sono (AOS).
Pacientes que usam opióides cronicamente podem necessitar de planos multimodais complexos para o controle da dor perioperatória. Nos pacientes usuários crônicos de opioides, um plano individualizado para o controle da dor pós-operatória se torna necessário. O nível habitual de terapia com opioide do paciente deve ser mantido ou aumentado durante todo o período perioperatório. A necessidade de opiáceos para esses pacientes pode ser alta e imprevisível devido à tolerância aos opioides. Pacientes idosos e pacientes com apneia obstrutiva do sono (AOS) podem ser mais propensos a efeitos colaterais de sedativos e opioides, exigindo a modificação da dose ou a abstenção desses medicamentos.
Embora as características individuais dos pacientes, os procedimentos cirúrgicos e os cenários clínicos variem muito, os protocolos devem servir apenas como um guia para orientação e deve ser modificado para atender às necessidades de cada paciente.
A prevenção da dor perioperatória deve ser um dos objetivos primários de todo médico anestesiologista. O uso de medicamentos pré anestésicos associada a uma anestesia multimodal planejada, humanizada, individualizada e uma analgesia específica para cada caso está associado a um melhor grau de satisfação e desfecho no pós operatório.
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