CASO CLÍNICO | Endocardite Infecciosa

Liga Acadêmica de Cardiologia da Paraíba (CARDIOLIGA-PB)
Autora: Felipe Montenegro Cavalcanti Sobreira Santos
Orientador: Dr. Ivson Cartaxo Braga
Instituição: Faculdade de Medicina Nova Esperança (FAMENE)
 
CARDIOLOGIA/CLÍNICA MÉDICA
 
HISTÓRIA CLÍNICA
 
Paciente feminina, 19 anos, branca, solteira, estudante de direito, natural e procedente do Conde-PB. Há 2 meses iniciou um quadro progressivo de astenia, anorexia, palidez e sonolência, tendo sido feito um diagnóstico de anemia, na sua cidade de origem, e instituído tratamento clínico. O quadro evoluiu com náuseas, vômitos, edema em membros inferiores, febre alta, dispneia aos mínimos esforços e manchas hemorrágicas subungueais, digitais e palmares sendo internada para tratamento de suporte e posteriormente encaminhada ao serviço de Clínica Médica do Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW) com as seguintes constatações: submeteu-se à extração dentária, em condições inadequadas, dois meses antes do início dos sintomas; sem antecedentes de infecção frequente de vias aéreas, cardiopatias ou febre reumática; possuía boas condições de moradia e alimentação; negava tabagismo etilismo e uso de drogas ilícitas; referia vida sexual ativa; ciclo menstrual regular e sem perdas sanguíneas.
 
EXAME FÍSICO

  • Estado geral regular, anictérico, acianótico, hipocorada (++/4+), afebril (36,5°C) e toxemiada.
  • PA 100×40 mmHg; FC 110 bpm; FR 34 irpm; SatO2 96%.
  • Ritmo cardíaco irregular e taquicárdico em dois tempos, com bulhas cardíacas hipofonéticas, com sopro sistólico mais audível em foco mitral, ictus cordis palpável (três polpas digitais) e turgência jugular a 45°
  • Tórax simétrico, com expansibilidade diminuída à direita. Estertores bolhosos em bases pulmonares, macicez à percussão e murmúrio vesicular diminuído à direita 
  • Abdome plano, tenso e doloroso, notavelmente em hipocôndrio direito, com fígado palpável, sem outras vísceromegalias
  • Pulsos palpáveis e simétricos. Edema em membros inferiores (++/+4). Extremidades normais.

 EXAMES COMPLEMENTARES
 

Laboratório Valores obtidos Valores de referência
HEMOGRAMA
Hemoglobina 9,1 g/dL 12 – 15,5 g/dL
Hematócrito 27,8% 34 – 45%
Leucócitos 14.300 cél/mm3 5.000 – 10.000/mm3
Bastonetes 3% 1-2%
  Desvio à esquerda  
BIOQUÍMICA
Ácido Úrico 9,8 mg 1,5-6,0 mg/dL
Ureia 123mg < 40 U/L
Creatinina 1,9mg 0,5-1,1 mg/dL
Bilirrubina Total 1,8mg 0,2-1,0 mg/dL
Bilirrubina Direta 1,1mg 0-0,20 mg/dL
Bilirrubina Indireta 0,7mg 0,2-0,8 mg/dL
OUTROS EXAMES
ASLO 833 UI < 200 UI

 
figura-1
Figura 1: Raio X de tórax na incidência póstero-anterior evidenciando um aumento da área cardíaca
FONTE: http://rmmg.org/artigo/detalhes/1376
 
 figura-2
Figura 2: Ecocardiograma demonstrando vegetação e refluxo mitral
FONTE: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-45082013000300020
 
PONTOS DE DISCUSSÃO

  1. Qual fator foi o desencadeante para lesão valvar e como ocorreu essa lesão?
  2. Qual o parâmetro para melhor classificar a patologia?
  3. Quais os principais achados encontrados na história clínica, exame físico, exames laboratoriais e de imagens podem ratificar essa patologia e quais outros achados poderiam ter sido encontrados?
  4. Quais os critérios mais utilizados no diagnóstico dessa doença?
  5. Qual a conduta terapêutica indicada para o caso e o seu prognóstico?

DISCUSSÃO
Como foi relatado na história clínica, a paciente foi submetida a uma extração dentária de maneira inadequada. Supõe-se que esse processo resultou em uma porta de entrada para agentes bacterianos o que levou a um quadro prodrômico de anemia (astenia, anorexia e palidez). Entretanto, essas manifestações clínicas são típicas da endocardite infecciosa subaguda, que é um dos tipos da patologia representando um quadro arrastado com os achados muitas vezes sendo atribuídos a outras doenças.
O quadro subagudo evoluiu para um agudo sendo justificado pelos sinais de toxemia e febre alta. O desencadeamento do processo infeccioso ocorreu com a extração dentária inadequada, visto que a cavidade bucal é uma região ricamente colonizada por bactérias, logo susceptível a uma bacteremia transitória em que o patógeno se infiltra na corrente sanguínea através da área traumatizada. Somando-se o início do quadro infeccioso ao resultado do Ecocardiograma que evidenciou lesões valvares sugestivas de acometimento reumático confirmou-se a suspeita clínica de endocardite infecciosa. Deve-se levar em conta que cerca de 60-80% de pacientes com endocardite infecciosa têm doença valvar subjacente e em 30% a cardiopatia reumática é a lesão predisponente.
Em se tratando das manifestações clínicas, o período de latência entre a bacteremia e o início dos sintomas na endocardite é de aproximadamente duas semanas na grande maioria dos casos, neste caso, exclusivamente, esse período estendeu-se por 2 meses. O quadro clínico foi inicialmente inespecífico com febre (mais comum, em 85%) e sintomas típicos de uma anemia. O sopro cardíaco presente ao exame físico pode estar presente em 80 a 85% dos casos, mas o sopro evidenciado nesse caso de regurgitação aórtica é pouco comum, ocorrendo em uma minoria dos pacientes. Além disso, os sinais periféricos caracterizados por hemorragias subungueais nos dedos dos pés ou das mãos são mais observados em idosos, valendo-se ressaltar que a paciente apresentou todos os achados supracitados.
Foram observadas ainda manifestações clínicas de insuficiência cardíaca sendo um resultado da destruição do aparelho valvar (cansaço físico, fadiga, palidez cutânea, retenção de sódio e água, congestão visceral com hepatomegalia dolorosa), como também, exame de imagem que evidenciou um aumento da área cardíaca. Atualmente, a insuficiência cardíaca rapidamente progressiva é a principal causa de óbito em pacientes com endocardite infecciosa. Os exames laboratoriais também puderam confirmar a presença de uma infecção bacteriana evidenciado pelo desvio à esquerda (bastonetes > 2%) e uma anemia (Hemoglobina < 12) caracterizando o quadro de anedonia, prostração e palidez cutânea.
O diagnóstico da endocardite é baseado em critérios principais (maiores) e critérios secundários (menores), que também são conhecidos como critérios de Duke modificados sendo necessários dois critérios maiores ou 1 critério maior + 2 menores ou 5 critérios menores, segue a tabela:
 

CRITÉRIOS DE DUKE MODIFICADOS
MAIORES
1- Hemoculturas positivas:
– Micro-organismos típicos para EI*, isolados em duas amostras separadas;
– Hemoculturas persistentemente positivas para QUALQUER micro-organismo (todas de três ou a maioria de quatro ou mais, sendo o intervalo entre a coleta da primeira e da última de no mínimo 1h, ou apenas duas, quando o intervalo de coleta for > 12h).
2- Ecocardiograma Positivo:
– Massa intracardíaca oscilante, sobre a valva ou suas estruturas de suporte (ex.: cordoália tendínea), ou no trajeto dos jatos regurgitantes, ou em material exógeno implantado;
– Abscesso endomiocárdico ou valvar;
– Valva protética apresentando deiscência parcial que não existia previamente;
– Regurgitação valvar que não existia previamente (aumento ou modificação de regurgitação previamente existente não são suficientes para contar como critério).
3- Sorologia positiva para Coxiella burnetti (título de IgG > 1:800) ou uma única amostra de hemocultura positiva para este germe
MENORES
1- Predisposição: lesão cardíaca predisponente ou uso de drogas IV.
2- Febre maior ou igual a 38ºC.
3- Fenômenos vasculares: êmbolo arterial grande, infartos sépticos pulmonares, hemorragia intracraniana, hemorragia conjuntival, manchas de Janeway, aneurisma micótico.
4- Fenômenos imunológicos: glomerulonefrite, nódulos de Osler, manchas de Roth, fator reumatoide.
5- Evidências microbiológicas que não preencham o critério MAJOR.
 

 
               
                A terapêutica do caso envolve a erradicação do organismo causador e o tratamento das principais manifestações hemodinâmicas e embólicas da doença secundária. O tratamento da insuficiência cardíaca foi feito de acordo com as recomendações do Consenso Brasileiro de ICC. O uso de antibióticos é de extrema importância no plano terapêutico, logo, esquemas bactericidas devem ser utilizados e de maneira eficaz, preferencialmente, por via intravenosa e com altas doses, levando-se em consideração também a duração da terapia, visto que os germes podem estar em um modo de estado inativo.
                Deve-se analisar o agente causador da infecção pela cultura solicitada para, a partir daí começar um esquema antibiótico conveniente. No caso em questão foi estabelecido a antibioticoterapia empírica (gentamicina e ceftriaxona), em virtude da hemocultura não evidenciar um crescimento bacteriano, optando-se pela utilização de antibiótico específico (vancomicina) após a cultura do material cirúrgico. Sabe-se que a paciente apresentou disfunção valvar com insuficiência cardíaca grave, sendo indicado o tratamento cirúrgico com troca de valva aórtica por prótese biológica, além disso o germe encontrado na cultura do material cirúrgico foi o S. cohnii:  microrganismo raro e resistente a uma gama de antibióticos.
                O prognóstico e o curso clínico da endocardite quando não é tratada levam sistematicamente ao óbito. Vale destacar que a resposta ao tratamento varia de acordo com o agente etiológico, doença cardíaca subjacente e a presença ou não de material protético intracardíaco. A presença de ICC assinala um mau prognóstico.
 

DIAGÓSTICOS DIFERENCIAIS PRINCIPAIS
Trombose de Prótese Cardíaca
Sepse
Infecções com febre de origem indeterminada (Tuberculose, Salmonelose)
Febre Reumática
Mixoma Cardíaco
Neoplasia
 

 
OBJETIVOS DE APRENDIZADO E COMPETÊNCIAS
 

  • Semiologia do paciente com endocardite infecciosa;
  • Diagnóstico clínico, laboratorial e imagem da endocardite infecciosa;
  • Diagnóstico diferencial de outras patologias, principalmente, reumáticas e valvares;
  • Conduta terapêutica da endocardite infecciosa;

PONTOS IMPORTANTES
 

  • É de extrema importância a coleta da história clínica, dos antecedentes patológicos e a realização de um exame físico completo;
  • É fundamental investigar fatores predisponentes e associados que possam firmar a evolução da patologia;
  • Evitar situações que possam propor uma infiltração bacteriana na corrente sanguínea;
  • Intervenção precoce em virtude de possível quadro de insuficiência cardíaca, evitando assim a morte, além da importância da troca valvar;

REFERÊNCIAS
 

  1. Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD et al. Atualização das Diretrizes Brasileiras de Valvopatias: Abordagem das Lesões Anatomicamente Importantes. Arq Bras Cardiol 2017; 109(6Supl.2):1-34
  2. Nascimento, V M V et al. Manual de Cardiologia para Graduação, 1ª ed. Salvador: Sanar, 2018.
  3. SILVA, A.C. Endocardite Infecciosa por Staphylococcus cohnii: relato de caso, Revista Médica de Minas Gerais 2007; 17(3/4): 164-168
  4. Comitê Coordenador da Diretriz de Insuficiência Cardíaca. Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca Crônica e Aguda. Arq Bras Cardiol. 2018; 111(3):436-539